domingo, 26 de abril de 2009

O que é parlamentarismo mitigado?

Eleições Separadas? Quem Ganha?

    A Constituição de um país define as instituições pelas quais o país se governa e estabelece a própria relação entre os cidadãos do país e as estruturas institucionais. Como tal é um documento político fundamental que estabelece os direitos e os deveres dos cidadãos e das instituições do Estado e reflete, também, o contexto e a forma pela qual a sociedade deseja ser governada. O desenho ou a reforma da Constituição pode jogar um papel crucial para o avanço e a sustentabilidade dos sistemas democráticos, assegurando mecanismos adequados para gerir conflitos dentro dos limites da coexistência pacífica e promovendo consensos em torno de valores fundamentais. Trata-se de um processo fundamentalmente político de promoção do interesse comum e não de um processo meramente legalístico (e tecnicamente solitário de especialistas em direito) de harmonização de interesses particulares conflitantes e de curto prazo. Espera-se, contudo, que o desenho ou revisão da Constituição seja o resultado de um debate alargado na sociedade, para que o processo seja legítimo e sirva à causa da estabilidade e da democracia. Como em todo o processo do debate político haverá aqueles com interesses a serem promovidos ou protegidos. É, evidentemente, legítimo e, na verdade, desejável que se encoraja o debate constitucional centrado em visões de longo prazo. É também inevitável que interesses sectoriais e de curto prazo acabem afetando o debate.
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    Não me parece que o corrente debate sobre a revisão constitucional, em Cabo Verde, esteja a ser efetivamente ampla. Tem sido dominado pelos actores político-partidários, com pouco envolvimento e iniciativa da sociedade civil, como tem sido prática desde o período da transição política. O facto de que com a abertura do período da revisão constitucional em 2004 não ter havido um debate continuado e consistente e, inclusivamente, de ter sido criada, pela Assembleia Nacional, uma Comissão Eventual para a revisão que terminou o mandato sem ter apresentado resultados palpáveis …, é sintomático.

    As alterações de determinados dispositivos constitucionais são aconselháveis quando os seus preceitos têm efeitos negativos para a sociedade e para o sistema político como um todo. Numa situação de “normalidade” institucional como a nossa, as revisões devem ser pontuais e feitas na base das que deram certo, numa perspectiva correctiva do que se provou não funcionar, visando o aperfeiçoamento da nossa democracia. Um dos pontos propostos para o período da revisão em curso diz respeito ao alargamento da distância temporal entre as eleições legislativas e presidenciais. É o assunto que aqui retomo para discussão, numa perspectiva de perdas e ganhos político-institucionais para o sistema democrático cabo-verdiano.

    Antes de tudo, deve-se ter em conta que tal proposta vai introduzir, de forma mais explícita, mais um ciclo eleitoral intermédio (intensificando o calendário eleitoral), que teria implicações na comparência eleitoral porque constitui um elemento de cansaço e pode provocar desinteresse junto dos eleitores, aumentando da taxa de abstenção eleitoral, com implicações no grau de legitimidade social dos eleitos. Além disso, constituiria um custo adicional, em termos financeiros, para um país pobre como Cabo Verde, dependente da ajuda externa até mesmo para a realização das eleições. Sabe-se que a preparação de cada eleição exige um grande esforço para a angariação de recursos financeiros, humanos e logísticos. Recursos esses que, se poupados, podem ser direcionados para outras dimensões necessárias para o reforço das nossas instituições democráticas ou aplicados em outros sectores do desenvolvimento do país.

    Estaríamos a viver todo o período de intervalo entre as duas eleições em ritmo de campanha eleitoral, de 3 a 6 meses, com as instituições a funcionarem a meio gás. O que constitui um custo adicional para a Administração do Estado (com a baixa de produtividade), visto que se tem verificado, com as sucessivas eleições, que boa parte de quadros dirigentes principais e intermédios têm se envolvido cada vez mais nas campanhas eleitorais. O maior distanciamento não exclui a possibilidade do partido governante desenvolver toda uma estratégia governativa e de comunicação que favoreça a promoção do candidato presidencial que escolher para apoiar, mantendo o efeito contágio. Tal situação daria razão à crítica de que ciclos eleitorais sucessivos e encadeados (legislativas/presidenciais/municipais) têm levado os governantes centrais e locais a tomarem medidas de política meramente eleitoralistas e não medidas de fundo e de longo alcance que correspondam às reais necessidades da população. Assim, não ganhamos!

    Admitindo a ocorrência do efeito contágio, ela não será eliminada com maior espaçamento das eleições. O melhor cenário para evitá-lo seria casar definitivamente as duas eleições. Contudo, deve-se antecipar a votação no seio da diáspora, considerando-se as diferenças dos fusos horários. A proposta de redução do mandato da legislatura redundaria num efectivo afastamento das eleições, mas com prejuízo para o tempo hábil necessário para um governo implementar a sua política, particularmente num país como Cabo Verde onde, por falta de recursos vários, os processos de planeamento e de execução de políticas públicas são, ainda, deficientes e lentos. Ademais, estudos comparados não mostram que haja uma tendência mundial para diminuição das legislaturas para quatro anos, como se pretende crer entre nós. Por exemplo, a França diminuiu o tempo do mandato do Presidente da República (PR) igualando-o ao da legislatura, sem diminuir o tempo desta. Algumas democracias presidencialistas e parlamentaristas vêm discutindo o aumento do mandato dos seus executivos, para superior a quatro anos.

    Os aspectos acima apontados constituem custos para a qualidade da democracia. Mais, se um dia tivermos uma situação de eleições antecipadas que voltassem a aproximar, casando, os dois actos eleitorais, o que faríamos? Um novo distanciamento, via revisão?

    Se existe algum receio de que o actual figurino, em termos de calendário, com eleições semi-casadas, que têm favorecido o dito efeito contágio, possa prejudicar as expectativas e as estratégias de algum dos candidatos, tal receio é ilusório ou fantasmagórico. As eleições são decididas pelos eleitores independentemente dos calendários. Que não hajam dúvidas sobre isso! Sem esquecer as polémicas do processo eleitoral, pergunto: o que explica a vitória de Carlos Veiga a nível do território nacional nas eleições presidenciais de 2001, embora tenha perdido no seio da comunidade emigrada? Foi a proximidade das duas eleições ou uma escolha explícita do eleitorado? Com o mesmo calendário estivemos quase experimentar uma situação ou cenário em que o PR seria alguém que tivesse saído do principal partido da oposição ao governo do PAICV.

    A maioria dos eleitores manifestaram claramente a escolha do candidato presidencial mais preferido e a escolha dessa maioria constitui também a escolha de uma configuração de relações institucionais e de poder entre titulares dos órgãos de soberania, numa perspectiva de cenário de uma provável cooperação e estabilidade nas relações institucionais entre os mesmos, sem descurar a assunção das responsabilidades políticas de cada um, particularmente do PR em termos de arbitragem e moderação políticas. Para efeitos da escolha do cenário o eleitorado estará a considerar o perfil e o percurso político dos candidatos, bem como os apelos dos candidatos e dos respectivos partidos de apoio. Esses apelos fazem parte do jogo político, do ponto de vista da estratégia para a conquista do voto. Acredito que os eleitores fazem a avaliação prospectiva dos cenários políticos que desejam ver materializados com os seus votos. A vitória eleitoral de Carlos Veiga no território nacional em 2001 pode ser percebido como indício do esboço de alguma tendência na preferência do eleitorado nacional mais para um cenário de governo e presidência da República de campos político-ideológicos distintos.

    A natureza estatuária do cargo presidencial não é afectada, pelas eleições legislativas. Porém, o estilo e o padrão do exercício do cargo podem ser afectados, mas pela personalidade do candidato eleito, pela sua relação com a maioria parlamentar e pela sua percepção sobre os desafios do país. E, porque não, pelos seus interesses políticos pessoais? É o titular quem define o estilo do exercício do cargo. Resta saber até que ponto e em que sentido o estilo do titular afeta os processos político e democrático.

    A natureza ou o estatuto suprapartidário é uma exigência da sociedade consubstanciada na Constituição e é um princípio que deve ser materializado pelos titulares do cargo presidencial. Se for solapado, terá conseqüências políticas. O cumprimento deste estatuto não decorre do resultado das eleições e nem é afectado pelo maior ou menor distanciamento entre as mesmas. Cabe sempre ao titular do cargo presidencial respeitar os princípios subjacentes ao seu estatuto suprapartidário, de modo a fazer as melhores arbitragem e moderação possíveis no sistema político, na perspectiva do desenvolvimento, estabilidade e consolidação democráticos. Assim, ganharemos todos!(Artigo publicado no Jornal A Semana N.º 889, de 24/04/2009, p. 26).

     Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Político

Eleições separadas para resultados solteiros?

Sobre a escolha dramática entre estabilidade governativa e mais arbitragem política


O período aberto para a revisão constitucional, em 2004, trouxe um leque amplo de propostas. Entre as várias propostas de reforma apresentadas destaco e discuto, aqui, a que diz respeito ao aumento do intervalo temporal entre as eleições legislativas e presidenciais. Esta proposta pretende acabar definitivamente com o carácter semi-casado das duas eleições, visando produzir resultados solteiros, em que a maioria parlamentar e o governo, que suportar, teriam “cor partidária” diferente da do Presidente da República (PR).

    Esta proposta traz consigo alguns pressupostos. Supostamente, com esta proposta pretende-se dar tempo ao eleitorado de avaliar o desempenho do governo escolhido pelo parlamento eleito e só depois ajuizar sobre que candidato eleger para PR. Alegadamente, o figurino proposto poderia evitar que o eleitorado escolhesse, por arrastamento, votar num candidato a PR da mesma cor política que o partido vencedor das legislativas, criando condições para que se tivesse um PR mais distanciado do partido do governo, com mais disponibilidade para arbitrar, de facto, o sistema político, com isenção e sem cumplicidade com o partido governante. A proposta teria, também, alguma preocupação de dissipar a tendência de hegemonia de um partido dentro do nosso sistema político, particularmente no quadro das instituições do Estado. Acredita-se que com esta proposta criar-se-ia condições que permitiriam uma melhor tradução do pluralismo político existente na sociedade caboverdiana.

    Questiono a validade e pertinência dessa proposta, por uma série de razões que se arrola abaixo:

    Primeiro, porque uma situação de governo dividido (coabitação) ou de governo unificado é o resultado da escolha e preferência do eleitorado. Só o eleitorado, e não o decreto, nos permitirá ter uma situação de governo dividido ou não. Como? Elegendo um presidente de cor politica diferente da do Primeiro Ministro (PM) ou não dando maioria absoluta para nenhum dos partidos em disputa. Ou seja, a preferência dos eleitores não decorre das legislações, mas sim de factores político-culturais e sócio-económicos. Portanto, resultados casados somente ocorrerão por conta exclusiva dos eleitores, isto é, quando coincidirem os interesses da maioria do eleitorado na escolha de candidato e partido(s), do mesmo quadrante politico-ideológico, para todos os cargos em disputa. Neste caso, há, por parte de muitos eleitores, uma escolha consciente para uma determinada configuração institucional, o que vai, em muitos casos, contra as preferências partidárias dos mesmos.

    Muitos países realizam eleições para cargos diferenciados no mesmo dia, porém, nem sempre, os resultados são casados, isto é, nem sempre verifica-se situações em que candidatos de um único partido conseguem vitórias simultaneamente para todos os cargos em disputa. Este é o caso do Brasil em que se realizam cinco eleições num único dia. Por outro lado, eleições para cargos diferenciados em períodos distintos nem sempre resultam em vitórias de candidatos ou partidos opostos, para cada um dos cargos em disputa, ou seja, resultados solteiros. Em França, antes de 2002, o PR tinha um mandato de sete anos e o parlamento um mandato de cinco anos, mas ocorreram períodos alternados de governos divididos e de governos unificados. Aliás, desde 2002, os franceses reduziram o mandato do PR e aproximaram as duas eleições, com oito semanas de distância. Em Portugal, onde existe um largo intervalo entre as eleições legislativas e presidenciais, temos observado uma alternância entre governos divididos e governos unificados[i]. Em Cabo Verde, desde 1991, de eleições semi-casadas, têm surgido resultados casados porque a maioria dos eleitores vêm respondendo favoravelmente aos apelos dos candidatos presidenciais, apoiados pelos partidos vencedores das legislativas, a favor de governos unificados, alegadamente por serem situações mais favoráveis à estabilidade governativa.

   O actual figurino de proximidade das duas eleições foi visto como consensual pelos actores políticos envolvidos, na altura da transição democrática, apesar da discordância, entre os mesmos, quanto à ordem das eleições. Desde então, que se saiba, o actual figurino não colocou problemas para a estabilidade governativa. Dada a proposta em apreço, apetece perguntar se a estabilidade passou a ser um empecilho para o país. Afinal tal estabilidade é um objectivo perseguido por todos os governos caboverdianos e por todos os actores políticos caboverdianos, por ser um recurso estratégico para a credibilização e viabilização do país a nível nacional e internacional. Porém, a estabilidade não é prerrogativa exclusiva de governos unificados. O drama nesta proposta está justamente no facto de muitos não perceberem que se pode, perfeitamente, ter estabilidade governativa e arbitragem a coexistirem com o actual figurino, porque a arbitragem não significa, necessariamente, instabilidade política e governativa. Veja-se o caso da crise ocorrida em 2000, com a intervenção arbitral de Mascarenhas Monteiro, demonstrando que os actuais dispositivos constitucionais para a arbitragem política, por parte do PR, são suficientes para os actos políticos do mesmo.

    Ademais, tal proposta, porque introduz mais um ciclo eleitoral distinto e intermediário, colide com o questionamento que se tem feito ao facto de termos ciclos eleitorais sucessivos, com os seus custos financeiros para o erário público e custos físicos para os eleitores, sendo estes últimos uma das possíveis razões do aumento da taxa de abstenção nas presidenciais. Uma outra crítica aponta que ciclos eleitorais sucessivos e encadeados (legislativas/presidenciais/municipais) têm levado os governantes centrais e locais a tomarem medidas de política meramente eleitoralistas e não medidas de fundo e de longo alcance que correspondam às reais necessidades da população. Tais críticas levam-me a defender que as duas eleições deveriam, pelo contrário, ocorrer simultaneamente, num mesmo dia, com boletins diferentes, pois, ganhar-se-ia tempo para se dedicar à governação efectiva e substantiva e ter-se-ia menos tempo de tensão eleitoralista, além do que evitar-se-ia desperdícios de recursos e esforços vários.

    Ora, o actual figurino pode ser alterado, pela escolha dos eleitores, por uma situação de um governo minoritário ou de coligação. Em ocorrendo este cenário, tanto poderá acontecer que o eleitorado escolha um candidato a PR proveniente das fileiras do partido do governo minoritário ou de um dos partidos da coligação, de modo a dar maiores credenciais ao governo, quanto poderá acontecer que escolha um candidato a PR proveniente das fileiras de um partido da oposição ou um independente. Neste quadro, umas, possíveis, eleições antecipadas, decorrentes desta situação, descasaria definitivamente os resultados.

     Esta parece ser uma questão que, numa circunstância, foi percebida como adequada e consensual, está, ser percebida como não adequada, para, circunstancialmente, se inscrever na lei um figurino diferente. Não faz sentido inscrever-se na lei alterações, baseadas em pressuposições e palpites casuísticos (quando certos interesses deixam de ser satisfeitos), que a dinâmica socio-política encarregar-se-á de solapar. Torna-se imperativo evitar criar, desnecessariamente, situações de instabilidade institucional.

    O drama tem sua origem na não percepção de que o maior ou menor poder de arbitragem política decorre, não da inscrição na lei do afastamento das duas eleições em causa, mas dos resultados eleitorais a nível parlamentar e da personalidade do PR, da sua posição face aos partidos, do relacionamento com o PM e da interpretação que o PR fizer sobre os desafios sócio-políticos e sócio-económicos que o país enfrenta a cada momento.

    Uma coisa é certa! A situação de governo dividido ou unificado é ditada, única e exclusivamente, pela escolha dos eleitores. A estabilidade governativa e uma arbitragem política consequente, dependem da atitude dos actores políticos. Por fim, mais uma vez, vale chamar atenção que a proposta discutida aqui, não teria razão de ser no contexto de um sistema de governo parlamentarista, visto que, neste, o Chefe de Estado/PR seria escolhido pelo parlamento ou seria um monarca hereditário. (Artigo publicado no Jornal Horizonte, em 15/03/2007)

    Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Politico


Endnotes: FIGUEIREDO, Marcus. (1994), “Competição eleitoral: eleições casadas, resultados solteiros”, Monitor Público, 2: 21-27; GSCHWENG, Thomas and LEUFFEN, Dirk. (2005), "Divided We Stand - Unified We Govern?? Cohabitation and Regime Voting in the 2002 French Elections". British Journal of Political Science, 35: 691-712; FRAIN, Maritheresa. (1995), "Relações entre o Presidente e o Primeiro Ministro em Portugal: 1985-1995", Análise Social, 30: 653-678.

Semi-presidencialismo, sim!

    Após quinze anos de estabelecimento do regime democrático e catorze anos sobre a promulgação da Constituição de 1992, continua-se verificar manifestações de equívocos na classificação do nosso sistema de governo instituído pela mesma Constituição, o que leva a maiores dificuldades no conhecimento do mesmo e na melhor percepção sobre as potencialidades do seu funcionamento e as suas virtudes. Esses equívocos e dificuldades perpassam sectores importantes da nossa sociedade, desde juristas, intelectuais, políticos, jornalistas e demais fazedores de opinião.

    A manifestação dos equívocos tem-se traduzido no facto de a maioria esmagadora das opiniões irem no sentido de classificar o nosso sistema de governo como um sistema parlamentar ou parlamentar mitigado. Por outro lado, alguns manifestam uma posição hesitante na classificação do sistema, ora classificando-o como parlamentar, ora como semipresidencial, tomando os dois modelos como sendo a mesma coisa. Ledo engano! Além disso, as justificações apresentadas para tais classificações não são rigorosas e fundamentadas em termos científicos, de molde a se perceber e avaliar a real dimensão e o alcance dos poderes presidências no quadro do sistema de governo. A instituição presidencial é (e tem sido) fulcral nesse debate.

    Os equívocos revelam erros de interpretação que, muitas vezes, levam os actores políticos (e não só) a terem posicionamentos e atitudes que podem fazer perigar o funcionamento das instituições e a estabilidade governativa. O facto de se tomar o sistema de governo por parlamentar tem feito com que o Presidente da República seja, reiteradas vezes, percebido como tendo fracos poderes e até ser considerado um “corta-fitas”, por isso, às vezes, desconsiderado política e institucionalmente.

    Entretanto, poucos são os que, prontamente, classificam o nosso sistema de governo como sendo semipresidencial. Ora, eu faço parte daqueles que o classificam como um sistema de governo semipresidencial. Essa classificação faço-a com base na Constituição de 1992, considerando elementos teóricos e explicativos tomados da literatura política comparada, conforme pode ser observado num trabalho académico produzido em 2001[i]. Outro trabalho que se empenha em classificar o nosso sistema de governo como semipresidencial é o do Aristides Lima, publicado em 2004[ii].

    Ora bem, assumo que quando uma constituição estabelece um Presidente da República (Chefe de Estado) popularmente eleito para um mandato fixo, dotado de importantes poderes constitucionalmente prescritos, dividindo o poder executivo com um Primeiro-Ministro (Chefe do Governo) responsável perante o parlamento, temos um sistema semipresidencial. Ou seja, todo e qualquer sistema político democrático que adoptar uma estrutura organizacional de divisão de poderes com uma tal configuração de poder executiva bicéfala, institui um sistema de governo semi-presidencial[iii].

    O modelo semipresidencial é uma engenharia político-constitucional, relativamente recente, que combina elementos do parlamentarismo e do presidencialismo. Em linhas gerais, o parlamentarismo caracteriza-se por: eleição popular para o parlamento; o parlamento escolhe o Primeiro-Ministro (Chefe do Governo); o chefe do poder executivo e a sua equipa são dependentes da confiança do parlamento e podem ser demitidos do cargo por um voto de não confiança ou de censura dos parlamentares; as decisões governamentais mais importantes são tomadas pelo colectivo dos ministros; existência de uma fusão de poderes, significando não só que o executivo é dependente da confiança do legislativo, mas também que as mesmas pessoas podem, em alguns casos, ser membros do Parlamento e do Governo; o Presidente da República e o Primeiro-Ministro podem, em alguns casos, ter o poder de dissolver o Parlamento; existe um Chefe de Estado (um monarca ou um presidente) simbólico e cerimonial, escolhido pelo Parlamento, com poucos poderes e sem funções executivas. Por seu turno, o presidencialismo caracteriza-se basicamente por: eleição popular directa ou indirecta para o Presidente a República, para um mandato fixo, constitucionalmente prescrito; o Presidente da República é, geralmente, simultaneamente, o Chefe de Estado e o Chefe do Governo, podendo ter poderes constitucionais de fazer leis; o Presidente da República escolhe “livremente” os membros do seu Governo; as decisões mais importante nos sistemas presidencialistas poder ser tomadas pelo presidente, com ou sem, ou mesmo contra a sugestão da sua equipa; apresenta separação (das fontes de origem e sobrevivência) dos poderes do executivo e do legislativo, que são mutuamente dependentes, porém com a norma de que a mesma pessoa não pode servir simultaneamente em ambos; o Presidente da República não pode dissolver o legislativo, nem este pode destituir o Chefe de Estado, a não ser por falta grave, através do processo de impeachment.

    Esta nova fórmula de governo, a semipresidencial, propõe que deve haver um ponto de encontro entre o Presidente da República e o Parlamento, capaz de suavizar, evitar e, quando necessário, resolver conflitos. Este ponto intermediário seria o Governo, que deveria ser nomeado pelo Chefe de Estado, mas seria, todavia, responsável perante o Parlamento. O dever do Governo seria servir de elo entre ambas as instituições e contribuir para estabelecer os compromissos necessários.

    A nova fórmula introduziu a eleição popular do Presidente da República, a quem foi concedido mais poderes que os do Chefe de Estado do sistema parlamentarista, mas menos que os do sistema presidencialista, implicando, automaticamente, na limitação dos poderes do Parlamento. A designação “semipresidencialista” em vez de “semiparlamentarista” deve-se ao facto da vontade popular ter duas expressões, tal qual no presidencialismo, bem como ao facto do Chefe de Estado ser dotado de algumas prerrogativas típicas daquele sistema, como: o poder de veto, participar na nomeação de altos funcionários do Estado, comandar o exercito, controlar a politica externa, solicitar a verificação da constitucionalidade das leis, presidir a reunião do Conselho de Ministros, etc. Alguns desses poderes são executivos, outros legislativos, embora com um carácter reactivo, mas nem por isso deixam de ser importantes na influenciação do processo governativo.

    Portanto, não tem cabimento usar a expressão “parlamentar(ismo)” ou “parlamentarismo mitigado” para classificar o nosso sistema de governo. Aliás, não existe concepção teórica e muito menos experiências empíricas de “sistema de governo parlamentar mitigado”. O dito “parlamentarismo mitigado” (ou racionalizado) constitui apenas uma variante prática (ou de práticas), no que tange às relações entre o legislativo e o executivo, no quadro do sistema de governo parlamentar e/ou, exclusivamente, na vertente parlamentar de funcionamento do sistema de governo semipresidencial.

    O sistema de governo semipresidencial é considerado um modelo misto vantajoso e bastante flexível, capaz de oferecer mecanismos para mitigar os problemas que, correntemente, surgem nos outros dois, podendo, por conseguinte, gerar mais estabilidade. Porém, o semipresidencialismo não é um presidencialismo moderado nem um parlamentarismo incrementado. É uma forma de governo em si mesma, propositadamente construída com vista a obter méritos do presidencialismo e a evitar defeitos do parlamentarismo.

   Contudo, importa reter que da mesma forma que os outros dois modelos, o sistema semipresidencial apresenta variantes em termos de estrutura constitucional (traduzindo-se em maiores ou menores poderes formais para cada um dos órgãos de soberania) e em termos de práticas políticas (com maior ou menor influência efectiva do Presidente da República no processo governativo), em função da interacção entre factores político-institucionais, factores socio-estruturais e históricos, em cada país.

    É imperativo considerarmos e aceitarmos, de uma vez por todas, que o nosso sistema de governo é semipresidencial. Senão, estaremos a insistir no equívoco. Devemos estudá-lo mais para livrarmos dos fantasmas e das fantasias no que respeita às relações entre as diferentes instituições.

    Finalmente, importa salientar que apenas no quadro constitucional semipresidencial seria possível haver cinco candidatos concorrentes para o cargo presidencial. Tal facto não ocorreria no sistema parlamentar, visto que este não oferece tantos incentivos em termos de prerrogativas constitucionais, importantes, para o cargo presidencial. (Artigo publicado no Jornal Horizonte, em 07/09/2006)

     Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Político


Endenotes:[i] COSTA, Daniel Henrique C. G.. (2001), “O Semipresidencialismo em Cabo Verde:1991/2000”. Dissertação de Mestrado, IUPERJ, Rio de Janeiro. Ver em www.cniunicv.cv[ii] LIMA, Aristides R. (2004), Estatuto Jurídico-constitucional do Chefe de Estado: um estudo de direito comparado. Praia, Alfa Comunicações. [iii] DUVERGER, Maurice. (1980), “A New Political System Model: Semi-presidential Government”. European Journal of Political Research, vol.8, pp.165-87.

Virtudes e Perigos do Semi-presidencialismo

    Dada a desejabilidade normativa da democracia como uma forma de governo, os estudiosos tem dado uma atenção renovada para os arranjos institucionais da democracia como a chave para o entendimento da estabilidade democrática. A atenção tem-se voltado para as virtudes e vícios ou perigos dos sistemas de governo, a partir de uma perspectiva de governabilidade e estabilidade democrática. Sabe-se que qualquer um dos três sistemas de governo democrático apresenta perigos e virtudes, inerentes às suas estruturas organizativas, mas também presentes nos seus modos de funcionamento.

   Em Cabo Verde os aspectos atinentes aos perigos e as virtudes dos sistemas de governo democráticos são questões que estiveram presentes entre os actores políticos no inicio dos anos 90, no âmbito das discussões em torno da formulação da Constituição que viria a ser promulgada em 1992. De facto, a preocupação com a estabilidade governativa foi um facto marcante na altura. Se nos remetermos ao passado, podemos perceber que devido às circunstâncias do momento da abertura e da transição, o actual figurino do sistema de governo adoptado em Cabo Verde - o semi-presidencial - foi percebido como a melhor solução para a estabilidade governativa do país. Os principais actores que participaram do debate em torno da questão constitucional em Cabo Verde sempre estiveram cientes dos perigos, tanto do presidencialismo, dados os exemplos africanos de regimes presidenciais que se desembocaram em regimes ditatoriais baseados na figura de líderes carismáticos, quanto do “parlamentarismo”, em parte, pelo próprio exemplo cabo-verdiano (e africano) de parlamentarismo excessivamente concentrado num único partido, o que gera forte autoritarismo do executivo na prática política[i].

   Concordo com António Mascarenhas Monteiro quando afirma, numa entrevista[ii], que a estabilidade politica de um pais não depende do sistema de governo formalmente definido, mas sim daquilo que os homens fizerem dele, ou seja, depende da forma como os actores políticos procederem no quadro do sistema estabelecido. Lapidarmente Mascarenhas Monteiro diz que: “Mais do que o texto constitucional é preciso confiar na boa vontade, no bom-senso e no sentido de responsabilidade dos homens. Qualquer texto constitucional serve a qualquer país desde que haja homens dispostos a respeitá-lo. Se as coisas funcionaram bem em Cabo Verde o mérito não é da Constituição mas dos actores da vida politica nacional” (…) “Desde que haja homens políticos conscientes dos seus deveres e com sentido de Estado. Se as coisas funcionaram bem, o mérito não é da Constituição; é dos homens. E quando falo de homens estou a falar do PR, do governo e dos partidos da oposição. O mérito é da nossa classe politica. Temos o país que temos graças aos actores da cena politica nacional”.

    Num sistema parlamentarista, quando o executivo perde a confiança do legislativo o governo cai e um novo gabinete, alinhado com os objectivos políticos da maioria legislativa, pode substituí-lo. Mas em caso de não haver partidos com maioria absoluta no parlamento pode ocorrer quedas sucessivas de governos e eleições antecipadas, traduzindo-se em instabilidade governativa. Neste caso, a instabilidade decorre da pérola do parlamentarismo que é o mecanismo de dissolução.

    Em franco contraste, num regime presidencialista, quando o executivo e o legislativo divergem sobre a direcção que a política deve tomar, toda o sistema é apanhado numa situação de impasse e consequente paralisia decisória. Para superar o impasse, cada um desses órgãos pode ser tentado a agir unilateralmente, com isso agravando a crise, o que pode, eventualmente, levar à intervenção militar como um poder moderador. O resultado final é a ruptura da democracia e a sua substituição por alguma forma de regime militar. Aqui, a crise decorre do elemento distintivo do presidencialismo que é o regime de separação de poderes.

    Os sistemas semi-presidencialistas são criticados, exactamente, porque as suas estruturas de autoridade dual, por inerência, podem dar origem a uma diarquia competitiva que facilmente pode-se transformar numa diarquia de confronto. O poder executivo é partilhado entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, e partilha por definição leva à ambiguidade. Não obstante, a legitimidade, o controle e a responsabilidade dos dois órgãos são fundamentalmente diferentes. A legitimidade do Primeiro-Ministro emana do corpo do legislativo e ele é mantido no cargo com a confiança do mesmo corpo, enquanto que a do Presidente da República possui maior autonomia em relação ao legislativo e sobrevive sem a sua aprovação. Aqui, percebe-se que uma das virtudes o semi-presidencialismo é poder desfrutar dos instrumentos fulcrais dos outros dois sistemas: a possibilidade de dissolução e o regime de separação de poderes. Estas duas características são capazes de criar tensões, teoricamente previsíveis e empiricamente verificáveis. Por exemplo, se o presidente resolver reivindicar a força da sua legitimidade, conferida por uma forte votação popular conseguida nas urnas, para se impor perante o executivo, essa atitude pode gerar conflitos, que podem fazer perigar a estabilidade e a consolidação democrática.

   Entretanto, o problema de “dupla legitimidade”, o principal problema teórico e político do presidencialismo, é mitigado sob o semi-presidencialismo dentro do próprio executivo. A diarquia evita o problema de impasse e conflito constitucional: (1) quando o partido ou coalizão partidária que apoia o Presidente da República ganha uma maioria no parlamento; (2) quando o Presidente da República concorda com a maioria no parlamento e permite ao Primeiro-Ministro exercer o poder (o primeiro ministro é, de fato, o chefe de executivo e o sistema pode operar com um pendor parlamentar); e (3) quando a “divisão constitucional de responsabilidades” entre o Chefe de Estado e o Primeiro-Ministro é clara e as prerrogativas ou domínios reservados são bem estabelecidos[iii]. Porém, tudo isso depende! Depende de factores de natureza pessoais e de factores de natureza institucionais. Por um lado, depende da personalidade do Presidente da República e da sua vontade (estratégica) de aceitar, ou não, a sua própria posição subordinada, face a um governo que recebe forte apoio da maioria parlamentar. Entretanto, nem por isso pode-se garantir que não possa haver situação de impasse. Por outro lado, depende de factores político-institucionais como a natureza do sistema partidário, a posição do Presidente da República face aos partidos e o alcance da prerrogativa de dissolução do Presidente da República.

    De tudo isto, cabe destacar que a vantagem do semi-presidencialismo, em relação aos outros dois sistemas de governo, está na sua maior flexibilidade, que pode traduzir-se no poder de arbitragem do Presidente da República, se este assumir um papel relevante no processo político, particularmente, por exemplo, no contexto de um parlamento extremamente fragmentado ou heterogéneo, com dificuldade na produção legislativa e no processo governativo. Nos casos do tipo, o Presidente da República, enquanto poder moderador, terá duas saídas: assumir a condução do processo político nomeando um governo de “inspiração presidencial”, caso não houver entendimento entre os partidos parlamentares na formação do governo, ou dissolver o parlamento e convocar eleições antecipadas, para ver se daí resultado um partido maioritário no parlamento.

    Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Político


Endenotes:[1] Jornal Voz di Povo, 31/03/1992, p.11. [i1] Jornal Horizonte, 18/02/1999. [1ii] COSTA, Daniel Henrique C. G.. (2001), “O Semipresidencialismo em Cabo Verde:1991/2000”. Dissertação de Mestrado, IUPERJ, Rio de Janeiro. Ver em www.cniunicv.cv.

A Flexibilidade do Semi-Presidencialismo

    Vários estudos já demonstraram que a definição correcta do semi-presidencialismo não é uma futilidade académica. O semi-presidencialismo é um sistema de governo dotado de dinâmica própria, distinta do parlamentarismo e do presidencialismo. Essa dinâmica foi adequadamente definida pelo politólogo francês Jean Massot como uma “diarquia hierárquica”[1]. Diarquia por que o Poder Executivo é exercido conjuntamente pelo Presidente da República (PR) e pelo Primeiro-Ministro (PR). Hierárquica porque, dependendo das circunstâncias políticas (composição do parlamento), o presidente pode “subordinar” o premier no que concerne à composição do governo e aos rumos das políticas do Estado, e vice-versa[2]. Aparentemente, falta aos que advogam a definição do sistema de governo cabo-verdiano como “parlamentar” e/ou “parlamentarismo mitigado” um conhecimento mais preciso do sistema de governo que propugnam e das variantes práticas do mesmo. Por conta dessa falta, a defesa que fazem do parlamentarismo e/ou parlamentarismo mitigado é frágil perante a análise dos dispositivos constitucionais (em perspectiva comparada) e perante a análise da prática política em Cabo Verde.

    O que segue abaixo é um esforço em termos de contributo para uma reflexão mais substancial sobre a dinâmica dos sistemas semi-presidencialistas em geral e para reflectirmos sobre os “Mundos Possíveis no Semi-presidencialismo Cabo-verdiano”[3].

    Vários autores, entre os quais Pasquino[4], já demonstraram que no semi-presidencialismo o Presidente da República não é o único titular do poder executivo, pois compartilha-o com o Primeiro-Ministro, em determinadas circunstâncias e em certas matérias. O PM é nomeado pelo PR, mas tem de recolher, se não a confiança, pelo menos a ausência de censura do parlamento. Em conclusão, o PM é duplamente responsável em relação a presidência da República e perante o parlamento. Aliás, ele, em determinados contextos e circunstâncias, pode pedir ao PR a dissolução do parlamento e, em certas condições, obtê-las. Por seu lado, o presidente pode recusar a dissolução do parlamento e nomear outro PM, que poderá governar se o parlamento a tal não se opuser, ou então aceitar dissolver o parlamento. Entretanto, temos que ter em conta que os limites para a dissolução variam entre países. Em termos concretos, um PM que detenha uma maioria que lhe permita governar não pedirá a dissolução do parlamento; e um presidente que preveja ou saiba que não obterá uma maioria parlamentar favorável não substituirá o PM nem tão pouco dissolvera o parlamento, sobretudo se algum eventual dissolução anterior já tiver dado lugar a uma maioria que lhe seja hostil.

    Com efeito, uma dissolução causada, por exemplo, pela divergência entre o presidente e um PM apoiado por uma maioria parlamentar, e que conduzisse, após uma nova consulta eleitoral, à repetição ou ao alargamento daquela maioria, resultaria numa séria derrota política e afectaria enormemente o prestigio do presidente. Obviamente, também no semi-presidencialismo os desfasamentos das eleições presidenciais e parlamentares podem levar a que o presidente eleito por uma certa maioria se encontre em funções simultaneamente com uma maioria parlamentar de cor diferente. Esta situação, que apresenta algumas semelhanças com o governo dividido do presidencialismo, designa-se por coabitação. Para remediar, o semi-presidencialismo oferece mais algumas saídas e mais alguma flexibilidade do que o presidencialismo.

    Poder-se-ia pensar que as saídas só funcionam a favor do presidente e que a flexibilidade só pode ser conseguida através da dissolução do parlamento. Mas no semipresidencialismo, em caso de coabitação, configuram-se dois elementos de atenuação de tensões e conflitos, um de natureza pessoal e outro de natureza institucional. O elemento pessoal é constituído pela ambição dos dois líderes em confronto. Se pretender ser (re)eleito, o presidente não forçará a coabitação a seu favor, para não parecer pouco respeitador da vontade do eleitorado que deu uma maioria parlamentar a partido ou partidos diferentes daqueles que apoiaram a sua eleição. O PM, por seu lado, se tiver alguma pretensão a candidatar-se à presidência da República, e não quiser causar problemas ao seu próprio partido, evitará igualmente forçar a situação. Estas duas ambições contrárias conseguirão contrabalançar-se mutuamente sem provocar a paralisia das instituições políticas. O segundo elemento que distingue a coabitação de um governo dividido típico do presidencialismo é de natureza político-partidária. O governo dividido no presidencialismo (às vezes sinónimo de paralisia decisória) ocorre quando o partido ao qual pertence o presidente em funções não possui maioria nos dois ramos do Congresso[5]. Se desviarmos a nossa atenção do sistema institucional e a fixarmos no sistema partidário, poderemos reparar que o semi-presidencialismo dispõe de alguns elementos de flexibilização e de distensão que o governo dividido não tem. São eles que permitem ao PM e ao seu governo funcionar, com o apoio do parlamento, mesmo quando a maioria parlamentar e a presidencial não coincidem entre si. O PM prevalece sobre o presidente graças à sua maioria parlamentar.

    Em França ao longo de vários anos, a coabitação fez coexistir um presidente eleito por uma maioria com um PM apoiado numa maioria parlamentar oposta àquela (1986-1988 e 1993-1995,). O último caso francês ocorreu, durante a presidência do gaulista Jacques Chirac, entre 1997 a 2000, com a eleição de uma maioria que levou o socialista Leonel Jospin ao Governo. Em Portugal, a coabitação de um presidente socialista e de um PM social-democrata (de centro-direita) durou ininterruptamente de 1987 a 1995. Essa situação repetiu-se com a eleição de um presidente socialista, Jorge Sampaio, e um PM social-democrata, Durão Barroso/Santa Lopes, entre 2003 e 2005 e a partir de 2005 com José Sócrates do PS e Cavaco Silva do PSD. Na Polónia, as maiorias parlamentares nunca foram inteiramente adversas ao presidente Walesa, mas também nunca se lhe subordinaram inteiramente. É possível afirmar que nem mesmo as coabitações mais complexas originaram, até hoje, problemas comparáveis aos do governo dividido e que as formas de governo semi-presidenciais, em presença de situações de maioria parlamentares estáveis, têm garantido, bastante melhor até do que o presidencialismo, a estabilidade dos Executivos e o seu bom funcionamento. Devido ao seu carácter flexível, o semi-presidencialismo parece mais capaz de produzir efectividade governamental do que o parlamentarismo e mais capaz de evitar impasse do que o presidencialismo. Por isso é que o semi-presidencialismo é apontado como uma óptima via para os países se livrarem de regimes - parlamentaristas ou presidencialistas - poucos eficientes para a implementação de políticas públicas ou para os países não democráticos efectuarem a transição para a democracia. O facto de a maioria das recentes democracias surgidas no mundo terem optado semi-presidencialismo, particularmente na Europa do Leste e na África, não é mera coincidência.

     Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Político 


Endnotes: [1] MASSOT, Jean. (1993), Chef de L’Etat et Chef du Government: Dyarchie et Hiérarchie. Paris, La Documentation Française. [2] AMORIM NETO, Octavio. (2000), “Semipresidencialismo!”, Jornal Estado de São Paulo, 26 de Janeiro. / [3] Titulo de um artigo nosso, no prelo. / [4] PASQUINO, Gianfranco. (1997), “Semi-Presidentialism: A political model at work”. European Journal of Political Research, vol.31, pp.128-137; Curso de Ciência Política (2002), Principia, Cascais. / [5] Veja-se a actual situação dos EUA com a Administração George W. Bush, em que os democratas detêm maioria nas duas câmaras. Ver também Jean Massot. (1993), Chefe de l`Etat et chef fu Gouvernement: Dyarchie et hiérarchie. Paris, La Documentaton Française.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Elite Política e Sistema Partidário Cabo-verdiano (II)

    A integração dos dirigentes do PCD na lista do MpD e do PTS na do PAICV constitui uma situação polémica uma vez que a prática nos tem revelado que a rigidez da disciplina partidária, em Cabo Verde, não oferece espaço de manobra para deputados agirem, efectivamente, como independentes, no seio das bancadas parlamentares. Neste sentido, consta que, das negociações havidas, os dirigentes do PCD tiverem que se desvincular do partido para integrarem a lista do MpD, visto que a lei dos partidos políticos não prevê uma situação de mera inclusão/inscrição de um militante de um partido na lista de um outro partido, fora do âmbito de uma coligação bem definida. No caso do PTS parece que as negociações feitas implicam o respeito estrito ao programa político do PAICV, como condição para uma provável retribuição de apoio a candidatos do PTS, em futuras eleições. Contudo, quem nos garante que esses arranjos não redundarão numa extinção destes dois pequenos partidos? O debate que se trava em torno e dentro do PCD, pode nos levar a pensar que seja bem provável, tendo em conta a alegada necessidade de reunificação das famílias dos democratas contra o PAICV. Mas, também, o apoio aberto do Onésimo Silveira ao PAICV nas eleições autárquicas do Mindelo, em 2004, e a integração do mesmo na lista do PAICV para as legislativas de 2006, leva-nos a acreditar que seja algo muito provável. Esta probabilidade decorre do facto destes pequenos partidos funcionarem, fortemente, em torno de alguns poucos dirigentes.

    Os factos apontados acima têm provocado alguma perplexidade em certos sectores da sociedade, que os percebe como imorais e pouco éticos ou como “casamento envergonhado”. Os mesmos factos, no fundo, contribuem, cada vez mais, para a dessacralização da política e dos políticos no imaginário social caboverdiano, ficando cada vez mais claro que, como nos ensina Maquiavel, a política é a arte de conquistar e manter o poder ou os recursos de poder, como cargos e outros recursos associados a cargos, para as quais os actores políticos recorrem aos mais diversos cálculos e estratégias, conforme as circunstâncias e as oportunidades eleitorais, muitas vezes sem considerar as aritméticas ideológicas, mas sim as aritméticas eleitorais. Para efeitos da análise das práticas políticas, os argumentos morais não contribuem para explicar a realidade. Vale, sim, salientar factores e variáveis políticos para a análise das práticas políticas. Por outro lado, coloca-se a questão, a discutir, se determinadas práticas de maximização de poder não colocariam limites ao processo de democratização da sociedade?

    Na linha de autores como Scott Mainwaring[i], havíamos chamado a atenção, algures[ii], para a importância, em termos analíticos, de se considerar o papel das elites políticas na configuração dos sistemas partidários, particularmente no caso dos chamados países da terceira e quarta vagas de democratização, como é o caso de Cabo Verde. Mainwaring, de forma muito plausível, procurou demonstrar que a interacção de factores como a estrutura do sistema eleitoral e as clivagens sociais, percebidos como fundamentais para determinar a configuração dos sistemas partidários nos países ocidentais de democracia consolidada, não são suficientes para promover uma explicação mais acertada para os sistemas partidários dos países da terceira e quarta vagas de democratização, nomeadamente nos países do terceiro mundo, que possuem traços político-culturais manifestamente distintos. Sendo assim, propõe uma reformulação das teorias do sistema partidário. Para Mainwaring, a abordagem inspirada nas clivagens sociais e na estrutura eleitoral, deixaram de contemplar dois factores fundamentais para explicar os contornos dos sistemas partidários dos países da terceira e quarta vagas, quais sejam o grau de institucionalização do sistema partidário e a capacidade do Estado e das elites políticas na estruturação e reestruturação dos sistemas partidários a partir de cima.

    A institucionalização é um processo fundamental para a consolidação do sistema partidário, com reflexos positivos para a democracia. A institucionalização refere-se a um processo pelo qual uma prática ou organização se torna bem estabelecida e largamente conhecida, senão universalmente aceita. Os actores desenvolvem expectativas, orientações e comportamentos baseados na premissa de que esta prática ou organização prevalecerá num futuro previsível. Em política, institucionalização significa que os actores políticos possuem expectativas claras e estáveis sobre o comportamento dos outros actores. Neste sentido, institucionalização é um processo pelo qual as organizações e os procedimentos adquirem valor e estabilidade. Um sistema partidário fracamente institucionalizado é caracterizado por instabilidade considerável nos padrões de competição partidária, fraca raiz partidária na sociedade, legitimidade comparativamente baixa dos partidos e fraca organização partidária. Os sistemas partidários fracamente institucionalizados funcionam muito diferentemente dos altamente institucionalizados, com importantes implicações para a democracia. Particularmente para o caso dos países da terceira e quarta vagas de democratização, o padrão sociológico de apoio para os partidos não deve obscurecer o fato de que são sempre as elites políticas (com pretensão de comandar o Estado) que criam os partidos. Na maioria das vezes, as elites criam partidos para promover os seus próprios interesses e os actores estatais muitas vezes dissolvem os sistemas partidários temendo que os mesmos representem uma ameaça para os seus interesses. Às vezes, as elites políticas precisam ganhar apoio da base para permanecerem eleitoralmente viáveis e, na luta para isso, ganham lealdade entre os diferentes sectores sociais, assim como sugeriria a abordagem sobre a clivagem.

    Em Cabo Verde, no que diz respeito à legislação eleitoral, a atitude e a prática de parte da elite politica e partidária nacionais, principalmente dos dois partidos que dominam o parlamento, têm sido percebidas como uma conveniente resistência em proceder à sua reforma em diversos aspectos. Sabe-se que a legislação eleitoral tem um efeito importante sobre os partidos. Entre os aspectos da legislação eleitoral que dominam a agenda da reforma destacam-se dois: a alteração da modalidade do financiamento dos partidos e a alteração da configuração círculos eleitorais, aumentando a magnitude da maioria deles, trazendo, com isso, condições para maior proporcionalidade ao sistema eleitoral. Sabendo que uma alteração na modalidade de financiamento aos partidos, com a atribuição, por exemplo, de um subsidio de funcionamento aos partidos, para além da subvenção decorrente do número de votos obtidos nas eleições, beneficiaria um pouco os chamados pequenos partidos, esta tal resistência constituiria uma forma que parte da elite politica encontrou para influir na configuração do sistema partidário, limitando as oportunidades dos pequenos partidos ou condicionando uma participação mais efectiva dos pequenos partidos no sistema politico. Estas práticas contribuem, em última instância, para limitar, substancialmente, as credenciais do nosso sistema democrático. Por outro lado, acredita-se, ainda, que tal resistência vem sendo manifestada num continuado processo de fragmentação dos círculo eleitorais, por exemplo, com a criação dos círculos de S. Domingos e Calheta S. Miguel e, mais recentemente, com a criação de mais cinco concelhos que se transformarão em círculos eleitorais nas eleições que terão lugar no futuro. Esse processo tem ido no sentido contrário das tendências recentes do debate e, vale dizer, do desejo dos chamados pequenos partidos. Estes factos, evidenciam a prevalência do cálculo racional dos dois maiores partidos caboverdianos, no sentido de maximização do poder, a nível local e nacional.

    Contudo, a recente retomada de propostas e debates sobre a reforma do sistema eleitoral parece prometer novos cenários, com sinais tendentes a promover uma maior proporcionalidade para o sistema eleitoral e melhores oportunidades para os pequenos partidos. Porém, tudo dependerá do comportamento das nossas elites politico-partidárias, como um todo.

    Portanto, as negociações inicialmente referidas, visando as eleições legislativas de 22 de Janeiro de 2006, constituem mais uma evidencia flagrante de que tem sido forte o papel exercido pela elite politica e partidária nacional na configuração do sistema partidário caboverdiano, com efeitos na sua respectiva institucionalização. (Artigo publicado no Jornal Horizonte, em 03/08/2006)

     Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Político 


Endnotes[i] MAINWARING, Scott. Rethinking Party System in the Third Wave of Democratization: The Case of Brazil. Stanford, Stanford University Press, 1999; [ii] COSTA, Daniel H.. “Sistema Eleitoral e Sistema Partidário Caboverdianos (1991-2001), Com um Olhar Sobre o Mundo”, Revista Direito & Cidadania, Nº 16/17, 2003.

Elite Política e Sistema Partidário Cabo-verdiano (I)

    As recentes movimentações políticas traduzidas em arranjos entre alguns sectores da elite política nacional, no quadro da preparação das eleições legislativas de 22 de Janeiro de 2006, trouxeram implicações importantes para o sistema partidário nacional, reforçando o quadro bipartidário. Veja-se os casos dos arranjos entre PCD e MpD, em Santiago, e entre PTS e PAICV, em S. Vicente, em que os principais líderes desses dois considerados pequenos partidos optaram por abrir mão da disputa eleitoral no quadro dos próprios partidos, para integrarem as listas do MpD e do PAICV, respectivamente. Entretanto podemos recuar um pouco mais e lembrar da queixa da UCID sobre a colusão, política e administrativa, “tacitamente urdida”, entre o PAICV e MpD para deixá-lo fora da disputa eleitoral de 1991. Para muitos, se a UCID tivesse entrado na corrida eleitoral daquele ano, a configuração parlamentar saída daquelas eleições inaugurais seria outra, que não bipartidária. Queremos salientar aqui que estes factos vêm demonstrar, mais uma vez, a importância e o papel das elites políticas na configuração do sistema partidário caboverdiano.

    Efectivamente, é interessante notar que o PCD e o PTS são os dois únicos dos pequenos partidos, com representação no parlamento caboverdiano, cada um com um mandato, na legislatura passada; mandatos esses obtidos através duma coligação eleitoral entre ambos, em 2001. Com a não participação dos mesmos, de forma autónoma, nas últimas disputas eleitorais, ficou reforçado o grau de concentração do nosso sistema partidário parlamentar, que se traduz num bipartidarismo, teimosamente polarizado.

    É certo que os chamados pequenos partidos (UCID, PCD, PSD, PRD, PTS), devido a alegada carência de recursos financeiros e humanos, sempre enfrentaram sérias dificuldades organizacionais. As limitações financeiras têm contribuído para retringir o grau de actuação e intervenção política desses partidos levando a que a performance eleitoral dos mesmos regrida em eleições sucessivas, com reflexo directo no montante do subsídio financeiro a atribuir pelo Estado. Entretanto, importa salientar que a capacidade e o vigor na acção e mobilização políticas não dependem somente de recursos financeiros; dependem, também, grandemente, da vontade e do interesse para o combate, por um projecto político, por parte dos líderes partidários. Em última instância, essas dimensões se incrementam mutuamente.

    Por um lado, esse recuo no desempenho eleitoral de alguns pequenos partidos tem colocado em causa as suas sobrevivência e manutenção nas competições eleitorais. Por outro lado, a participação intermitente e cada vez menos substancial desses partidos na competição eleitoral contribui para limitar o alcance do processo de institucionalização do sistema partidário, uma vez que se verifica que a maioria deles não consegue competir em todos os círculos eleitorais no território nacional e no estrangeiro. Em boa medida, estas limitações vêm fazendo com que os pequenos partidos actuem, cada vez mais, de facto, como partidos locais ou regionais, o que contraria a lei.

    É um facto que esses considerados pequenos partidos, pelo contexto e modo como surgiram, são, claramente, partidos de quadros, na acepção de Maurice Duverger, visto terem surgido da acção política no seio da elite política, cultural e empresarial nacionais. São partidos que surgiram em reacção a ou da cisão no seio dos dois maiores partidos, o PAICV e o MpD. Efectivamente, nos momentos em que foram criados esses pequenos partidos encontravam-se dotados, de um número e qualidade bastantes, de quadros que se acreditava serem capazes de fazer as respectivas máquinas politicas funcionarem. Porém, desde muito cedo não foram capazes de demonstrar vigor estratégico e organizacionais necessários para os fins a que se propuseram. Constata-se, além disso, que os trabalhos de reforço da militância e de mobilização popular ser quase inexistentes, entre esses partidos, o que acreditamos que contribui mais ainda para o definhamento eleitoral dos mesmos, bem como para a redução da credibilidade e legitimação na representação popular. Efectivamente, são partidos que aparecem com mais acutilância política nas vésperas das eleições.

    Entretanto, o fraco desempenho dos mesmos, particularmente do PCD e PTS, nas eleições autárquicas de 2004 terá dado às suas cúpulas sinais claros de que os respectivos mandatos no parlamento poderiam não ser renovados nas eleições legislativas de 2006. Este facto redundou em crise de liderança interna a esses dois partidos. Em consequência, surgiram especulações, sobre uma provável extinção desses dois pequenos partidos com posterior ingresso/retorno dos seus principais dirigentes nos dois principais partidos, nomeadamente PAICV e MpD. Esta acção revela, na realidade, um claro cálculo estratégico de procura de sobrevivência política (possibilidade de aceder a cargos), por parte das elites dirigentes desses dois pequenos partidos. Deste modo, fica evidente que a postura de muitos políticos caboverdianoss enquadra-se na categoria daqueles que os cientistas políticos anglo-saxões chamam de office-seekers, categoria de políticos que agem sempre a procura de manter ou conquistar cargos, em oposição àqueles que seriam policy-seekers, que propugnam por determinadas linhas de políticas públicas. De facto, os políticos tendo em conta o imperativo de sobrevivência política, em um cenário de incerteza eleitoral passam a considerar a possibilidade de troca de partido nas vésperas das eleições, com base na avaliação acerca do impacto de tal atitude sobre a continuidade de sua carreira política. O argumento de alguns dirigentes do PCD de que a integração no MpD é uma das melhores formas de os dirigentes e quadros militantes do PCD terem alguma voz, intervenção e influencia mais activa no sistema político, não deixa esconder o cálculo de sobrevivência política por parte dos mesmos. Afinal, estamos a verificar uma crescente profissionalização dos políticos no país. (Artigo publicado no Jornal Horizonte, em 20/07/2006)

     Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Político

quinta-feira, 29 de março de 2007

A verdade é geralmente ouvida mas raramente vista

Com notável capacidade de síntese, a frase do jesuíta espanhol Baltasar Gracián y Morales estabelece um contraste entre falar e fazer, lembrando que verbalizar é muito mais fácil que agir A conhecida expressão popular "falar é fácil, fazer é que é difícil" também assinala a diferença entre os dois atos. Entretanto, o pensador aragonês Gracián (1601-1658) formula seu princípio de maneira precisa, referindo-o à verdade - uma questão que suscita grandes controvérsias e divergências no jogo político: "Fale o que é certo e faça o que é honrado. O primeiro mostra uma cabeça perfeita, o segundo, um coração perfeito. E ambos elevam-se ao nível de um espírito superior." Baltasar Gracián no selo comemorativo ao quarto centenário de seu nascimento, em 2001: "Fale o que é certo e faça o que é honrado" No universo da política, a palavra reina e a realização é sempre mais modesta. Por maior que seja o talento do líder, a excelência de sua oratória e as sutilezas de seu raciocínio, palavras serão sempre palavras e, como tal, estarão sempre sujeitas a contestações também por meio da palavra. Por outro lado, aquilo que pode ser visto e demonstrado na prática impõe-se a qualquer um como a própria verdade. O político prudente nunca permite que suas palavras se afastem demasiadamente de seus atos. Nem no que diz respeito a seu comportamento e seus valores, tampouco no que se refere a seu desempenho político e administrativo. Além disso, ele deve criar o hábito de respaldar idéias e propostas com fatos - e isto precisa se tornar disciplina intelectual e regra de discussão entre seus auxiliares. A lição também vem de Gracián: "As palavras são as sombras dos atos. Os atos são a substância da vida e palavras sábias, o seu adorno". Um dos estereótipos mais comuns aplicado aos políticos é o que o apresenta como um indivíduo de oratória fácil, pomposa e vazia, manejando ardis verbais e uma argumentação incansável. É o "bem falante", o "bom de papo", na irreverente linguagem popular. Por trás deste estereótipo, entretanto, há boa dose de verdade. O político, muitas vezes, deixa-se enganar por sua própria arte de falar, esquecendo-se de que, para manter seu valor, as palavras precisam ser acompanhadas por atos. A advertência serve também para a publicidade política: a propaganda feita sobre um fato, uma realização, é sempre mais confiável para o cidadão do que aquela outra, construída sobre intenções e declarações. O fato e sua imagem falam por si mesmos - e com muito maior força e eloqüência do que o melhor dos discursos. De forma análoga, quando surge uma acusação ou denúncia, dispor de um documento que comprove sua falsidade é incomparavelmente mais forte do que qualquer declaração pessoal, testemunho ou argumento desacompanhado de alguma evidência factual ou documental. Nas reuniões políticas, numa equipe de campanha, por exemplo, as discussões nas quais os argumentos não se amparam em fatos, evidências e informações precisas tendem a se transformar em discussões estéreis, em que se intercambiam palpites, especulações e opiniões como se fossem informações. James Carville e Paul Begala, consultores políticos do então candidato à Casa Branca, Bill Clinton, em 1992, têm uma expressão muito apropriada para descrever os tipos de pessoas que participam de campanhas eleitorais: "Quem sabe faz. Quem não sabe se reúne". Mas a cautela com as palavras não deve nos levar a perder de vista sua importância. Desde que venham referenciadas por atos e fatos, as palavras possuem um enorme poder na política. Principalmente quando elas chegam depois dos atos haverem sido praticados e dos fatos terem ocorrido. Por: Francisco Ferraz (Site: politicaparapoliticos)

O "caso Dreyfus" e a carta de Zola (III)

O escritor Émile Zola, que teve de fugir para a Inglaterra para não ser preso, e voltou para a França em 1899, morreu em 29 de setembro de 1902, sem ter visto a reabilitação de Dreyfus, pronunciada em 1906. A França e o mundo nunca mais seriam os mesmos depois do Caso Dreyfus. A mobilização da opinião pública, pelo uso dos meios de comunicação de massa, tornou-se uma arma política poderosa e começou a ser praticada nos mais diversos cantos do planeta e pelos mais diversos motivos. A carta de Zola Paris, 13 de janeiro de 1898 Carta a M. Félix FaurePresidente da República Francesa Senhor, Permiti-me que, agradecido pela bondosa acolhida que me dispensou, preocupe-me mais com a vossa glória e vos diga que vossa estrela, tão feliz até hoje, está ameaçada pela mancha mais vergonhosa e inapagável. Saístes são e salvo de baixas calúnias e conquistastes corações. (...) Mas que mancha de lodo sobre o vosso nome pode imprimir este abominável processo Dreyfus! Desde logo um Conselho de Guerra se atreve a absolver a Esterhazy, numa bofetada suprema em toda a verdade, em toda a justiça. E não há remédio; a França vai conservar esta mancha e a história vai registrar que semelhante crime social foi cometido ao amparo da vossa presidência. Já que se agiu sem razão, falarei. É meu dever: não quero ser cúmplice. Todas as noites eu veria o espectro do inocente que expia cruelmente torturado, um crime que não cometeu. Por isso me dirijo a vós gritando a verdade com toda a força da minha rebelião de homem honrado. Estou convencido de que ignorais o que ocorre. Mas a quem denunciar as infâmias desta turba de malfeitores, de verdadeiros culpados, senão ao primeiro magistrado do país?! (...) Antes de tudo, a verdade sobre o processo e a condenação de Dreyfus. (...) Procedeu-se a um minucioso registro, examinando-se as caligrafias. Aquilo era como um assunto de família e se buscava o traidor nos mesmos escritórios para surpreendê-lo e expulsá-lo. A partir do momento em que uma leve suspeita recaiu sobre Dreyfus, aparece o comandante Paty de Clam, que se esforça para confundi-lo e fazê-lo confessar. Aparece também o ministro da Guerra, o general Mercier, cuja inteligência deve ser muito mediana, o chefe do Estado Maior, general Boisdeffre, que por certo cedeu à sua paixão clerical, e o general Gonse, cuja consciência elástica pode acomodar-se a muitas coisas. O comandante Paty de Clam prende Dreyfus e o deixa incomunicável. Corre depois em busca da senhora Dreyfus e lhe infunde o terror, prevenindo-a de que se falar sobre o assunto, seu marido estará perdido. De sua parte o infeliz proclama em alaridos a sua inocência, enquanto a instrução do processo se faz como a crônica do século XV, em meio ao mistério, com uma terrível complexidade de expedientes, tudo baseado numa suspeita infantil, na nota suspeita... (...) Dreyfus conhece várias línguas: é um crime; em sua casa não encontram papéis comprometedores: é um crime; algumas vezes visita sua terra: é um crime; e trabalhador, tem ânsia de saber: é um crime; não se perturba: é um crime. Tudo é crime, sempre crime. Falaram-nos de 14 acusações e não aparece mais que uma: a nota manuscrita suspeita. Os peritos não estão de acordo e um deles, M. Gobert, foi atropelado militarmente porque se permitia opinar em contra o que se desejava. Assim, pois, somente restava a nota suspeita, acerca da qual os peritos não estavam de acordo.(....) Para justificar a condenação fala-se da existência de um documento secreto, arrasador, um documento que não se pode publicar e que justifica tudo e ante o qual todos devemos nos inclinar. (...) O primeiro Conselho de Guerra pode ter-se equivocado, mas o segundo mentiu. (....) Por isso, repito, Dreyfus não pode ser inocente sem que todo o Estado Maior apareça como culpado. (....) Tal é a verdade, senhor presidente.(...) Não creia V., Exa. Que eu desespero do triunfo. Eu repito com uma certeza que não permite a menor vacilação: a verdade avança e nada poderá detê-la. Quanto mais duramente se oprime a verdade, mais força ela ganha, e a explosão será terrível. Veremos como se prepara o mais ruidoso dos desastres. Senhor presidente, concluo, que já é tempo: Eu acuso o Ten. Coronel Paty de Clam, como agente do erro judicial e por haver defendido sua obra nefasta por três anos com maquinações insanas e culpadas. Eu acuso o general Mercier por haver-se tornado cúmplice, ao menos por fraqueza, de uma das maiores iniqüidades do século. Eu acuso o general Billot de haver tido em suas mãos as provas da inocência de Dreyfus, e não as haver utilizado, fazendo-se, portanto, culpado pelo crime de lesa-humanidade e de lesa-justiça, com o fim político de salvar o Estado Maior comprometido. Eu acuso o general Boisdeffre e o general Gonse por tornarem-se cúmplices do mesmo crime, um por fanatismo clerical e outro por espírito de corpo, que faz dos escritórios do Ministério da Guerra uma arca santa e inatacável. Eu acuso o general Pellieux e o comandante Ravary por haverem fabricado uma informação infame, uma informação parcialmente monstruosa, na qual o segundo lavrou o imperecível monumento de sua torpe audácia. Eu acuso os três peritos calígrafos, os senhores Belhomme, Varinard e Couard por seus pareceres enganadores e fraudulentos, a menos que um exame médico os declare vítimas de uma cegueira dos olhos ou do juízo. Eu acuso o Ministério da Guerra por haver feito na imprensa, particularmente no L' É Clair e no L'Echo de Paris, uma campanha abominável, enganando a opinião pública para cobrir a sua falta. Eu acuso o primeiro Conselho de Guerra por ter condenado um acusado, com fundamento num documento secreto. E Eu acuso o segundo Conselho de Guerra por haver coberto esta ilegalidade, cometendo o crime jurídico de absolver conscientemente um culpado (Esterhazy). Eu não ignoro que ao formular estas acusações atraio sobre mim os artigos 30 e 31 da Lei de Imprensa, que se referem aos delitos de difamação. Voluntariamente ponho-me à disposição dos Tribunais. Um só sentimento me move: o desejo de que se faça luz. Meu ardente protesto nada mais é que um grito de minha alma. Que se atrevam a levar-me aos Tribunais e me julguem publicamente. Assim espero. Émile ZolaParis, 13 de janeiro de 1898 Por Francisco Ferraz (site: politicaparapoliticos)

O que é parlamentarismo mitigado?