domingo, 26 de abril de 2009

A Flexibilidade do Semi-Presidencialismo

    Vários estudos já demonstraram que a definição correcta do semi-presidencialismo não é uma futilidade académica. O semi-presidencialismo é um sistema de governo dotado de dinâmica própria, distinta do parlamentarismo e do presidencialismo. Essa dinâmica foi adequadamente definida pelo politólogo francês Jean Massot como uma “diarquia hierárquica”[1]. Diarquia por que o Poder Executivo é exercido conjuntamente pelo Presidente da República (PR) e pelo Primeiro-Ministro (PR). Hierárquica porque, dependendo das circunstâncias políticas (composição do parlamento), o presidente pode “subordinar” o premier no que concerne à composição do governo e aos rumos das políticas do Estado, e vice-versa[2]. Aparentemente, falta aos que advogam a definição do sistema de governo cabo-verdiano como “parlamentar” e/ou “parlamentarismo mitigado” um conhecimento mais preciso do sistema de governo que propugnam e das variantes práticas do mesmo. Por conta dessa falta, a defesa que fazem do parlamentarismo e/ou parlamentarismo mitigado é frágil perante a análise dos dispositivos constitucionais (em perspectiva comparada) e perante a análise da prática política em Cabo Verde.

    O que segue abaixo é um esforço em termos de contributo para uma reflexão mais substancial sobre a dinâmica dos sistemas semi-presidencialistas em geral e para reflectirmos sobre os “Mundos Possíveis no Semi-presidencialismo Cabo-verdiano”[3].

    Vários autores, entre os quais Pasquino[4], já demonstraram que no semi-presidencialismo o Presidente da República não é o único titular do poder executivo, pois compartilha-o com o Primeiro-Ministro, em determinadas circunstâncias e em certas matérias. O PM é nomeado pelo PR, mas tem de recolher, se não a confiança, pelo menos a ausência de censura do parlamento. Em conclusão, o PM é duplamente responsável em relação a presidência da República e perante o parlamento. Aliás, ele, em determinados contextos e circunstâncias, pode pedir ao PR a dissolução do parlamento e, em certas condições, obtê-las. Por seu lado, o presidente pode recusar a dissolução do parlamento e nomear outro PM, que poderá governar se o parlamento a tal não se opuser, ou então aceitar dissolver o parlamento. Entretanto, temos que ter em conta que os limites para a dissolução variam entre países. Em termos concretos, um PM que detenha uma maioria que lhe permita governar não pedirá a dissolução do parlamento; e um presidente que preveja ou saiba que não obterá uma maioria parlamentar favorável não substituirá o PM nem tão pouco dissolvera o parlamento, sobretudo se algum eventual dissolução anterior já tiver dado lugar a uma maioria que lhe seja hostil.

    Com efeito, uma dissolução causada, por exemplo, pela divergência entre o presidente e um PM apoiado por uma maioria parlamentar, e que conduzisse, após uma nova consulta eleitoral, à repetição ou ao alargamento daquela maioria, resultaria numa séria derrota política e afectaria enormemente o prestigio do presidente. Obviamente, também no semi-presidencialismo os desfasamentos das eleições presidenciais e parlamentares podem levar a que o presidente eleito por uma certa maioria se encontre em funções simultaneamente com uma maioria parlamentar de cor diferente. Esta situação, que apresenta algumas semelhanças com o governo dividido do presidencialismo, designa-se por coabitação. Para remediar, o semi-presidencialismo oferece mais algumas saídas e mais alguma flexibilidade do que o presidencialismo.

    Poder-se-ia pensar que as saídas só funcionam a favor do presidente e que a flexibilidade só pode ser conseguida através da dissolução do parlamento. Mas no semipresidencialismo, em caso de coabitação, configuram-se dois elementos de atenuação de tensões e conflitos, um de natureza pessoal e outro de natureza institucional. O elemento pessoal é constituído pela ambição dos dois líderes em confronto. Se pretender ser (re)eleito, o presidente não forçará a coabitação a seu favor, para não parecer pouco respeitador da vontade do eleitorado que deu uma maioria parlamentar a partido ou partidos diferentes daqueles que apoiaram a sua eleição. O PM, por seu lado, se tiver alguma pretensão a candidatar-se à presidência da República, e não quiser causar problemas ao seu próprio partido, evitará igualmente forçar a situação. Estas duas ambições contrárias conseguirão contrabalançar-se mutuamente sem provocar a paralisia das instituições políticas. O segundo elemento que distingue a coabitação de um governo dividido típico do presidencialismo é de natureza político-partidária. O governo dividido no presidencialismo (às vezes sinónimo de paralisia decisória) ocorre quando o partido ao qual pertence o presidente em funções não possui maioria nos dois ramos do Congresso[5]. Se desviarmos a nossa atenção do sistema institucional e a fixarmos no sistema partidário, poderemos reparar que o semi-presidencialismo dispõe de alguns elementos de flexibilização e de distensão que o governo dividido não tem. São eles que permitem ao PM e ao seu governo funcionar, com o apoio do parlamento, mesmo quando a maioria parlamentar e a presidencial não coincidem entre si. O PM prevalece sobre o presidente graças à sua maioria parlamentar.

    Em França ao longo de vários anos, a coabitação fez coexistir um presidente eleito por uma maioria com um PM apoiado numa maioria parlamentar oposta àquela (1986-1988 e 1993-1995,). O último caso francês ocorreu, durante a presidência do gaulista Jacques Chirac, entre 1997 a 2000, com a eleição de uma maioria que levou o socialista Leonel Jospin ao Governo. Em Portugal, a coabitação de um presidente socialista e de um PM social-democrata (de centro-direita) durou ininterruptamente de 1987 a 1995. Essa situação repetiu-se com a eleição de um presidente socialista, Jorge Sampaio, e um PM social-democrata, Durão Barroso/Santa Lopes, entre 2003 e 2005 e a partir de 2005 com José Sócrates do PS e Cavaco Silva do PSD. Na Polónia, as maiorias parlamentares nunca foram inteiramente adversas ao presidente Walesa, mas também nunca se lhe subordinaram inteiramente. É possível afirmar que nem mesmo as coabitações mais complexas originaram, até hoje, problemas comparáveis aos do governo dividido e que as formas de governo semi-presidenciais, em presença de situações de maioria parlamentares estáveis, têm garantido, bastante melhor até do que o presidencialismo, a estabilidade dos Executivos e o seu bom funcionamento. Devido ao seu carácter flexível, o semi-presidencialismo parece mais capaz de produzir efectividade governamental do que o parlamentarismo e mais capaz de evitar impasse do que o presidencialismo. Por isso é que o semi-presidencialismo é apontado como uma óptima via para os países se livrarem de regimes - parlamentaristas ou presidencialistas - poucos eficientes para a implementação de políticas públicas ou para os países não democráticos efectuarem a transição para a democracia. O facto de a maioria das recentes democracias surgidas no mundo terem optado semi-presidencialismo, particularmente na Europa do Leste e na África, não é mera coincidência.

     Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Político 


Endnotes: [1] MASSOT, Jean. (1993), Chef de L’Etat et Chef du Government: Dyarchie et Hiérarchie. Paris, La Documentation Française. [2] AMORIM NETO, Octavio. (2000), “Semipresidencialismo!”, Jornal Estado de São Paulo, 26 de Janeiro. / [3] Titulo de um artigo nosso, no prelo. / [4] PASQUINO, Gianfranco. (1997), “Semi-Presidentialism: A political model at work”. European Journal of Political Research, vol.31, pp.128-137; Curso de Ciência Política (2002), Principia, Cascais. / [5] Veja-se a actual situação dos EUA com a Administração George W. Bush, em que os democratas detêm maioria nas duas câmaras. Ver também Jean Massot. (1993), Chefe de l`Etat et chef fu Gouvernement: Dyarchie et hiérarchie. Paris, La Documentaton Française.

O que é parlamentarismo mitigado?