domingo, 26 de abril de 2009

Virtudes e Perigos do Semi-presidencialismo

    Dada a desejabilidade normativa da democracia como uma forma de governo, os estudiosos tem dado uma atenção renovada para os arranjos institucionais da democracia como a chave para o entendimento da estabilidade democrática. A atenção tem-se voltado para as virtudes e vícios ou perigos dos sistemas de governo, a partir de uma perspectiva de governabilidade e estabilidade democrática. Sabe-se que qualquer um dos três sistemas de governo democrático apresenta perigos e virtudes, inerentes às suas estruturas organizativas, mas também presentes nos seus modos de funcionamento.

   Em Cabo Verde os aspectos atinentes aos perigos e as virtudes dos sistemas de governo democráticos são questões que estiveram presentes entre os actores políticos no inicio dos anos 90, no âmbito das discussões em torno da formulação da Constituição que viria a ser promulgada em 1992. De facto, a preocupação com a estabilidade governativa foi um facto marcante na altura. Se nos remetermos ao passado, podemos perceber que devido às circunstâncias do momento da abertura e da transição, o actual figurino do sistema de governo adoptado em Cabo Verde - o semi-presidencial - foi percebido como a melhor solução para a estabilidade governativa do país. Os principais actores que participaram do debate em torno da questão constitucional em Cabo Verde sempre estiveram cientes dos perigos, tanto do presidencialismo, dados os exemplos africanos de regimes presidenciais que se desembocaram em regimes ditatoriais baseados na figura de líderes carismáticos, quanto do “parlamentarismo”, em parte, pelo próprio exemplo cabo-verdiano (e africano) de parlamentarismo excessivamente concentrado num único partido, o que gera forte autoritarismo do executivo na prática política[i].

   Concordo com António Mascarenhas Monteiro quando afirma, numa entrevista[ii], que a estabilidade politica de um pais não depende do sistema de governo formalmente definido, mas sim daquilo que os homens fizerem dele, ou seja, depende da forma como os actores políticos procederem no quadro do sistema estabelecido. Lapidarmente Mascarenhas Monteiro diz que: “Mais do que o texto constitucional é preciso confiar na boa vontade, no bom-senso e no sentido de responsabilidade dos homens. Qualquer texto constitucional serve a qualquer país desde que haja homens dispostos a respeitá-lo. Se as coisas funcionaram bem em Cabo Verde o mérito não é da Constituição mas dos actores da vida politica nacional” (…) “Desde que haja homens políticos conscientes dos seus deveres e com sentido de Estado. Se as coisas funcionaram bem, o mérito não é da Constituição; é dos homens. E quando falo de homens estou a falar do PR, do governo e dos partidos da oposição. O mérito é da nossa classe politica. Temos o país que temos graças aos actores da cena politica nacional”.

    Num sistema parlamentarista, quando o executivo perde a confiança do legislativo o governo cai e um novo gabinete, alinhado com os objectivos políticos da maioria legislativa, pode substituí-lo. Mas em caso de não haver partidos com maioria absoluta no parlamento pode ocorrer quedas sucessivas de governos e eleições antecipadas, traduzindo-se em instabilidade governativa. Neste caso, a instabilidade decorre da pérola do parlamentarismo que é o mecanismo de dissolução.

    Em franco contraste, num regime presidencialista, quando o executivo e o legislativo divergem sobre a direcção que a política deve tomar, toda o sistema é apanhado numa situação de impasse e consequente paralisia decisória. Para superar o impasse, cada um desses órgãos pode ser tentado a agir unilateralmente, com isso agravando a crise, o que pode, eventualmente, levar à intervenção militar como um poder moderador. O resultado final é a ruptura da democracia e a sua substituição por alguma forma de regime militar. Aqui, a crise decorre do elemento distintivo do presidencialismo que é o regime de separação de poderes.

    Os sistemas semi-presidencialistas são criticados, exactamente, porque as suas estruturas de autoridade dual, por inerência, podem dar origem a uma diarquia competitiva que facilmente pode-se transformar numa diarquia de confronto. O poder executivo é partilhado entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, e partilha por definição leva à ambiguidade. Não obstante, a legitimidade, o controle e a responsabilidade dos dois órgãos são fundamentalmente diferentes. A legitimidade do Primeiro-Ministro emana do corpo do legislativo e ele é mantido no cargo com a confiança do mesmo corpo, enquanto que a do Presidente da República possui maior autonomia em relação ao legislativo e sobrevive sem a sua aprovação. Aqui, percebe-se que uma das virtudes o semi-presidencialismo é poder desfrutar dos instrumentos fulcrais dos outros dois sistemas: a possibilidade de dissolução e o regime de separação de poderes. Estas duas características são capazes de criar tensões, teoricamente previsíveis e empiricamente verificáveis. Por exemplo, se o presidente resolver reivindicar a força da sua legitimidade, conferida por uma forte votação popular conseguida nas urnas, para se impor perante o executivo, essa atitude pode gerar conflitos, que podem fazer perigar a estabilidade e a consolidação democrática.

   Entretanto, o problema de “dupla legitimidade”, o principal problema teórico e político do presidencialismo, é mitigado sob o semi-presidencialismo dentro do próprio executivo. A diarquia evita o problema de impasse e conflito constitucional: (1) quando o partido ou coalizão partidária que apoia o Presidente da República ganha uma maioria no parlamento; (2) quando o Presidente da República concorda com a maioria no parlamento e permite ao Primeiro-Ministro exercer o poder (o primeiro ministro é, de fato, o chefe de executivo e o sistema pode operar com um pendor parlamentar); e (3) quando a “divisão constitucional de responsabilidades” entre o Chefe de Estado e o Primeiro-Ministro é clara e as prerrogativas ou domínios reservados são bem estabelecidos[iii]. Porém, tudo isso depende! Depende de factores de natureza pessoais e de factores de natureza institucionais. Por um lado, depende da personalidade do Presidente da República e da sua vontade (estratégica) de aceitar, ou não, a sua própria posição subordinada, face a um governo que recebe forte apoio da maioria parlamentar. Entretanto, nem por isso pode-se garantir que não possa haver situação de impasse. Por outro lado, depende de factores político-institucionais como a natureza do sistema partidário, a posição do Presidente da República face aos partidos e o alcance da prerrogativa de dissolução do Presidente da República.

    De tudo isto, cabe destacar que a vantagem do semi-presidencialismo, em relação aos outros dois sistemas de governo, está na sua maior flexibilidade, que pode traduzir-se no poder de arbitragem do Presidente da República, se este assumir um papel relevante no processo político, particularmente, por exemplo, no contexto de um parlamento extremamente fragmentado ou heterogéneo, com dificuldade na produção legislativa e no processo governativo. Nos casos do tipo, o Presidente da República, enquanto poder moderador, terá duas saídas: assumir a condução do processo político nomeando um governo de “inspiração presidencial”, caso não houver entendimento entre os partidos parlamentares na formação do governo, ou dissolver o parlamento e convocar eleições antecipadas, para ver se daí resultado um partido maioritário no parlamento.

    Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Político


Endenotes:[1] Jornal Voz di Povo, 31/03/1992, p.11. [i1] Jornal Horizonte, 18/02/1999. [1ii] COSTA, Daniel Henrique C. G.. (2001), “O Semipresidencialismo em Cabo Verde:1991/2000”. Dissertação de Mestrado, IUPERJ, Rio de Janeiro. Ver em www.cniunicv.cv.

O que é parlamentarismo mitigado?