domingo, 26 de abril de 2009

Eleições Separadas? Quem Ganha?

    A Constituição de um país define as instituições pelas quais o país se governa e estabelece a própria relação entre os cidadãos do país e as estruturas institucionais. Como tal é um documento político fundamental que estabelece os direitos e os deveres dos cidadãos e das instituições do Estado e reflete, também, o contexto e a forma pela qual a sociedade deseja ser governada. O desenho ou a reforma da Constituição pode jogar um papel crucial para o avanço e a sustentabilidade dos sistemas democráticos, assegurando mecanismos adequados para gerir conflitos dentro dos limites da coexistência pacífica e promovendo consensos em torno de valores fundamentais. Trata-se de um processo fundamentalmente político de promoção do interesse comum e não de um processo meramente legalístico (e tecnicamente solitário de especialistas em direito) de harmonização de interesses particulares conflitantes e de curto prazo. Espera-se, contudo, que o desenho ou revisão da Constituição seja o resultado de um debate alargado na sociedade, para que o processo seja legítimo e sirva à causa da estabilidade e da democracia. Como em todo o processo do debate político haverá aqueles com interesses a serem promovidos ou protegidos. É, evidentemente, legítimo e, na verdade, desejável que se encoraja o debate constitucional centrado em visões de longo prazo. É também inevitável que interesses sectoriais e de curto prazo acabem afetando o debate.
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    Não me parece que o corrente debate sobre a revisão constitucional, em Cabo Verde, esteja a ser efetivamente ampla. Tem sido dominado pelos actores político-partidários, com pouco envolvimento e iniciativa da sociedade civil, como tem sido prática desde o período da transição política. O facto de que com a abertura do período da revisão constitucional em 2004 não ter havido um debate continuado e consistente e, inclusivamente, de ter sido criada, pela Assembleia Nacional, uma Comissão Eventual para a revisão que terminou o mandato sem ter apresentado resultados palpáveis …, é sintomático.

    As alterações de determinados dispositivos constitucionais são aconselháveis quando os seus preceitos têm efeitos negativos para a sociedade e para o sistema político como um todo. Numa situação de “normalidade” institucional como a nossa, as revisões devem ser pontuais e feitas na base das que deram certo, numa perspectiva correctiva do que se provou não funcionar, visando o aperfeiçoamento da nossa democracia. Um dos pontos propostos para o período da revisão em curso diz respeito ao alargamento da distância temporal entre as eleições legislativas e presidenciais. É o assunto que aqui retomo para discussão, numa perspectiva de perdas e ganhos político-institucionais para o sistema democrático cabo-verdiano.

    Antes de tudo, deve-se ter em conta que tal proposta vai introduzir, de forma mais explícita, mais um ciclo eleitoral intermédio (intensificando o calendário eleitoral), que teria implicações na comparência eleitoral porque constitui um elemento de cansaço e pode provocar desinteresse junto dos eleitores, aumentando da taxa de abstenção eleitoral, com implicações no grau de legitimidade social dos eleitos. Além disso, constituiria um custo adicional, em termos financeiros, para um país pobre como Cabo Verde, dependente da ajuda externa até mesmo para a realização das eleições. Sabe-se que a preparação de cada eleição exige um grande esforço para a angariação de recursos financeiros, humanos e logísticos. Recursos esses que, se poupados, podem ser direcionados para outras dimensões necessárias para o reforço das nossas instituições democráticas ou aplicados em outros sectores do desenvolvimento do país.

    Estaríamos a viver todo o período de intervalo entre as duas eleições em ritmo de campanha eleitoral, de 3 a 6 meses, com as instituições a funcionarem a meio gás. O que constitui um custo adicional para a Administração do Estado (com a baixa de produtividade), visto que se tem verificado, com as sucessivas eleições, que boa parte de quadros dirigentes principais e intermédios têm se envolvido cada vez mais nas campanhas eleitorais. O maior distanciamento não exclui a possibilidade do partido governante desenvolver toda uma estratégia governativa e de comunicação que favoreça a promoção do candidato presidencial que escolher para apoiar, mantendo o efeito contágio. Tal situação daria razão à crítica de que ciclos eleitorais sucessivos e encadeados (legislativas/presidenciais/municipais) têm levado os governantes centrais e locais a tomarem medidas de política meramente eleitoralistas e não medidas de fundo e de longo alcance que correspondam às reais necessidades da população. Assim, não ganhamos!

    Admitindo a ocorrência do efeito contágio, ela não será eliminada com maior espaçamento das eleições. O melhor cenário para evitá-lo seria casar definitivamente as duas eleições. Contudo, deve-se antecipar a votação no seio da diáspora, considerando-se as diferenças dos fusos horários. A proposta de redução do mandato da legislatura redundaria num efectivo afastamento das eleições, mas com prejuízo para o tempo hábil necessário para um governo implementar a sua política, particularmente num país como Cabo Verde onde, por falta de recursos vários, os processos de planeamento e de execução de políticas públicas são, ainda, deficientes e lentos. Ademais, estudos comparados não mostram que haja uma tendência mundial para diminuição das legislaturas para quatro anos, como se pretende crer entre nós. Por exemplo, a França diminuiu o tempo do mandato do Presidente da República (PR) igualando-o ao da legislatura, sem diminuir o tempo desta. Algumas democracias presidencialistas e parlamentaristas vêm discutindo o aumento do mandato dos seus executivos, para superior a quatro anos.

    Os aspectos acima apontados constituem custos para a qualidade da democracia. Mais, se um dia tivermos uma situação de eleições antecipadas que voltassem a aproximar, casando, os dois actos eleitorais, o que faríamos? Um novo distanciamento, via revisão?

    Se existe algum receio de que o actual figurino, em termos de calendário, com eleições semi-casadas, que têm favorecido o dito efeito contágio, possa prejudicar as expectativas e as estratégias de algum dos candidatos, tal receio é ilusório ou fantasmagórico. As eleições são decididas pelos eleitores independentemente dos calendários. Que não hajam dúvidas sobre isso! Sem esquecer as polémicas do processo eleitoral, pergunto: o que explica a vitória de Carlos Veiga a nível do território nacional nas eleições presidenciais de 2001, embora tenha perdido no seio da comunidade emigrada? Foi a proximidade das duas eleições ou uma escolha explícita do eleitorado? Com o mesmo calendário estivemos quase experimentar uma situação ou cenário em que o PR seria alguém que tivesse saído do principal partido da oposição ao governo do PAICV.

    A maioria dos eleitores manifestaram claramente a escolha do candidato presidencial mais preferido e a escolha dessa maioria constitui também a escolha de uma configuração de relações institucionais e de poder entre titulares dos órgãos de soberania, numa perspectiva de cenário de uma provável cooperação e estabilidade nas relações institucionais entre os mesmos, sem descurar a assunção das responsabilidades políticas de cada um, particularmente do PR em termos de arbitragem e moderação políticas. Para efeitos da escolha do cenário o eleitorado estará a considerar o perfil e o percurso político dos candidatos, bem como os apelos dos candidatos e dos respectivos partidos de apoio. Esses apelos fazem parte do jogo político, do ponto de vista da estratégia para a conquista do voto. Acredito que os eleitores fazem a avaliação prospectiva dos cenários políticos que desejam ver materializados com os seus votos. A vitória eleitoral de Carlos Veiga no território nacional em 2001 pode ser percebido como indício do esboço de alguma tendência na preferência do eleitorado nacional mais para um cenário de governo e presidência da República de campos político-ideológicos distintos.

    A natureza estatuária do cargo presidencial não é afectada, pelas eleições legislativas. Porém, o estilo e o padrão do exercício do cargo podem ser afectados, mas pela personalidade do candidato eleito, pela sua relação com a maioria parlamentar e pela sua percepção sobre os desafios do país. E, porque não, pelos seus interesses políticos pessoais? É o titular quem define o estilo do exercício do cargo. Resta saber até que ponto e em que sentido o estilo do titular afeta os processos político e democrático.

    A natureza ou o estatuto suprapartidário é uma exigência da sociedade consubstanciada na Constituição e é um princípio que deve ser materializado pelos titulares do cargo presidencial. Se for solapado, terá conseqüências políticas. O cumprimento deste estatuto não decorre do resultado das eleições e nem é afectado pelo maior ou menor distanciamento entre as mesmas. Cabe sempre ao titular do cargo presidencial respeitar os princípios subjacentes ao seu estatuto suprapartidário, de modo a fazer as melhores arbitragem e moderação possíveis no sistema político, na perspectiva do desenvolvimento, estabilidade e consolidação democráticos. Assim, ganharemos todos!(Artigo publicado no Jornal A Semana N.º 889, de 24/04/2009, p. 26).

     Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Político

O que é parlamentarismo mitigado?