domingo, 26 de abril de 2009

Semi-presidencialismo, sim!

    Após quinze anos de estabelecimento do regime democrático e catorze anos sobre a promulgação da Constituição de 1992, continua-se verificar manifestações de equívocos na classificação do nosso sistema de governo instituído pela mesma Constituição, o que leva a maiores dificuldades no conhecimento do mesmo e na melhor percepção sobre as potencialidades do seu funcionamento e as suas virtudes. Esses equívocos e dificuldades perpassam sectores importantes da nossa sociedade, desde juristas, intelectuais, políticos, jornalistas e demais fazedores de opinião.

    A manifestação dos equívocos tem-se traduzido no facto de a maioria esmagadora das opiniões irem no sentido de classificar o nosso sistema de governo como um sistema parlamentar ou parlamentar mitigado. Por outro lado, alguns manifestam uma posição hesitante na classificação do sistema, ora classificando-o como parlamentar, ora como semipresidencial, tomando os dois modelos como sendo a mesma coisa. Ledo engano! Além disso, as justificações apresentadas para tais classificações não são rigorosas e fundamentadas em termos científicos, de molde a se perceber e avaliar a real dimensão e o alcance dos poderes presidências no quadro do sistema de governo. A instituição presidencial é (e tem sido) fulcral nesse debate.

    Os equívocos revelam erros de interpretação que, muitas vezes, levam os actores políticos (e não só) a terem posicionamentos e atitudes que podem fazer perigar o funcionamento das instituições e a estabilidade governativa. O facto de se tomar o sistema de governo por parlamentar tem feito com que o Presidente da República seja, reiteradas vezes, percebido como tendo fracos poderes e até ser considerado um “corta-fitas”, por isso, às vezes, desconsiderado política e institucionalmente.

    Entretanto, poucos são os que, prontamente, classificam o nosso sistema de governo como sendo semipresidencial. Ora, eu faço parte daqueles que o classificam como um sistema de governo semipresidencial. Essa classificação faço-a com base na Constituição de 1992, considerando elementos teóricos e explicativos tomados da literatura política comparada, conforme pode ser observado num trabalho académico produzido em 2001[i]. Outro trabalho que se empenha em classificar o nosso sistema de governo como semipresidencial é o do Aristides Lima, publicado em 2004[ii].

    Ora bem, assumo que quando uma constituição estabelece um Presidente da República (Chefe de Estado) popularmente eleito para um mandato fixo, dotado de importantes poderes constitucionalmente prescritos, dividindo o poder executivo com um Primeiro-Ministro (Chefe do Governo) responsável perante o parlamento, temos um sistema semipresidencial. Ou seja, todo e qualquer sistema político democrático que adoptar uma estrutura organizacional de divisão de poderes com uma tal configuração de poder executiva bicéfala, institui um sistema de governo semi-presidencial[iii].

    O modelo semipresidencial é uma engenharia político-constitucional, relativamente recente, que combina elementos do parlamentarismo e do presidencialismo. Em linhas gerais, o parlamentarismo caracteriza-se por: eleição popular para o parlamento; o parlamento escolhe o Primeiro-Ministro (Chefe do Governo); o chefe do poder executivo e a sua equipa são dependentes da confiança do parlamento e podem ser demitidos do cargo por um voto de não confiança ou de censura dos parlamentares; as decisões governamentais mais importantes são tomadas pelo colectivo dos ministros; existência de uma fusão de poderes, significando não só que o executivo é dependente da confiança do legislativo, mas também que as mesmas pessoas podem, em alguns casos, ser membros do Parlamento e do Governo; o Presidente da República e o Primeiro-Ministro podem, em alguns casos, ter o poder de dissolver o Parlamento; existe um Chefe de Estado (um monarca ou um presidente) simbólico e cerimonial, escolhido pelo Parlamento, com poucos poderes e sem funções executivas. Por seu turno, o presidencialismo caracteriza-se basicamente por: eleição popular directa ou indirecta para o Presidente a República, para um mandato fixo, constitucionalmente prescrito; o Presidente da República é, geralmente, simultaneamente, o Chefe de Estado e o Chefe do Governo, podendo ter poderes constitucionais de fazer leis; o Presidente da República escolhe “livremente” os membros do seu Governo; as decisões mais importante nos sistemas presidencialistas poder ser tomadas pelo presidente, com ou sem, ou mesmo contra a sugestão da sua equipa; apresenta separação (das fontes de origem e sobrevivência) dos poderes do executivo e do legislativo, que são mutuamente dependentes, porém com a norma de que a mesma pessoa não pode servir simultaneamente em ambos; o Presidente da República não pode dissolver o legislativo, nem este pode destituir o Chefe de Estado, a não ser por falta grave, através do processo de impeachment.

    Esta nova fórmula de governo, a semipresidencial, propõe que deve haver um ponto de encontro entre o Presidente da República e o Parlamento, capaz de suavizar, evitar e, quando necessário, resolver conflitos. Este ponto intermediário seria o Governo, que deveria ser nomeado pelo Chefe de Estado, mas seria, todavia, responsável perante o Parlamento. O dever do Governo seria servir de elo entre ambas as instituições e contribuir para estabelecer os compromissos necessários.

    A nova fórmula introduziu a eleição popular do Presidente da República, a quem foi concedido mais poderes que os do Chefe de Estado do sistema parlamentarista, mas menos que os do sistema presidencialista, implicando, automaticamente, na limitação dos poderes do Parlamento. A designação “semipresidencialista” em vez de “semiparlamentarista” deve-se ao facto da vontade popular ter duas expressões, tal qual no presidencialismo, bem como ao facto do Chefe de Estado ser dotado de algumas prerrogativas típicas daquele sistema, como: o poder de veto, participar na nomeação de altos funcionários do Estado, comandar o exercito, controlar a politica externa, solicitar a verificação da constitucionalidade das leis, presidir a reunião do Conselho de Ministros, etc. Alguns desses poderes são executivos, outros legislativos, embora com um carácter reactivo, mas nem por isso deixam de ser importantes na influenciação do processo governativo.

    Portanto, não tem cabimento usar a expressão “parlamentar(ismo)” ou “parlamentarismo mitigado” para classificar o nosso sistema de governo. Aliás, não existe concepção teórica e muito menos experiências empíricas de “sistema de governo parlamentar mitigado”. O dito “parlamentarismo mitigado” (ou racionalizado) constitui apenas uma variante prática (ou de práticas), no que tange às relações entre o legislativo e o executivo, no quadro do sistema de governo parlamentar e/ou, exclusivamente, na vertente parlamentar de funcionamento do sistema de governo semipresidencial.

    O sistema de governo semipresidencial é considerado um modelo misto vantajoso e bastante flexível, capaz de oferecer mecanismos para mitigar os problemas que, correntemente, surgem nos outros dois, podendo, por conseguinte, gerar mais estabilidade. Porém, o semipresidencialismo não é um presidencialismo moderado nem um parlamentarismo incrementado. É uma forma de governo em si mesma, propositadamente construída com vista a obter méritos do presidencialismo e a evitar defeitos do parlamentarismo.

   Contudo, importa reter que da mesma forma que os outros dois modelos, o sistema semipresidencial apresenta variantes em termos de estrutura constitucional (traduzindo-se em maiores ou menores poderes formais para cada um dos órgãos de soberania) e em termos de práticas políticas (com maior ou menor influência efectiva do Presidente da República no processo governativo), em função da interacção entre factores político-institucionais, factores socio-estruturais e históricos, em cada país.

    É imperativo considerarmos e aceitarmos, de uma vez por todas, que o nosso sistema de governo é semipresidencial. Senão, estaremos a insistir no equívoco. Devemos estudá-lo mais para livrarmos dos fantasmas e das fantasias no que respeita às relações entre as diferentes instituições.

    Finalmente, importa salientar que apenas no quadro constitucional semipresidencial seria possível haver cinco candidatos concorrentes para o cargo presidencial. Tal facto não ocorreria no sistema parlamentar, visto que este não oferece tantos incentivos em termos de prerrogativas constitucionais, importantes, para o cargo presidencial. (Artigo publicado no Jornal Horizonte, em 07/09/2006)

     Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Político


Endenotes:[i] COSTA, Daniel Henrique C. G.. (2001), “O Semipresidencialismo em Cabo Verde:1991/2000”. Dissertação de Mestrado, IUPERJ, Rio de Janeiro. Ver em www.cniunicv.cv[ii] LIMA, Aristides R. (2004), Estatuto Jurídico-constitucional do Chefe de Estado: um estudo de direito comparado. Praia, Alfa Comunicações. [iii] DUVERGER, Maurice. (1980), “A New Political System Model: Semi-presidential Government”. European Journal of Political Research, vol.8, pp.165-87.

O que é parlamentarismo mitigado?