domingo, 26 de abril de 2009

Eleições separadas para resultados solteiros?

Sobre a escolha dramática entre estabilidade governativa e mais arbitragem política


O período aberto para a revisão constitucional, em 2004, trouxe um leque amplo de propostas. Entre as várias propostas de reforma apresentadas destaco e discuto, aqui, a que diz respeito ao aumento do intervalo temporal entre as eleições legislativas e presidenciais. Esta proposta pretende acabar definitivamente com o carácter semi-casado das duas eleições, visando produzir resultados solteiros, em que a maioria parlamentar e o governo, que suportar, teriam “cor partidária” diferente da do Presidente da República (PR).

    Esta proposta traz consigo alguns pressupostos. Supostamente, com esta proposta pretende-se dar tempo ao eleitorado de avaliar o desempenho do governo escolhido pelo parlamento eleito e só depois ajuizar sobre que candidato eleger para PR. Alegadamente, o figurino proposto poderia evitar que o eleitorado escolhesse, por arrastamento, votar num candidato a PR da mesma cor política que o partido vencedor das legislativas, criando condições para que se tivesse um PR mais distanciado do partido do governo, com mais disponibilidade para arbitrar, de facto, o sistema político, com isenção e sem cumplicidade com o partido governante. A proposta teria, também, alguma preocupação de dissipar a tendência de hegemonia de um partido dentro do nosso sistema político, particularmente no quadro das instituições do Estado. Acredita-se que com esta proposta criar-se-ia condições que permitiriam uma melhor tradução do pluralismo político existente na sociedade caboverdiana.

    Questiono a validade e pertinência dessa proposta, por uma série de razões que se arrola abaixo:

    Primeiro, porque uma situação de governo dividido (coabitação) ou de governo unificado é o resultado da escolha e preferência do eleitorado. Só o eleitorado, e não o decreto, nos permitirá ter uma situação de governo dividido ou não. Como? Elegendo um presidente de cor politica diferente da do Primeiro Ministro (PM) ou não dando maioria absoluta para nenhum dos partidos em disputa. Ou seja, a preferência dos eleitores não decorre das legislações, mas sim de factores político-culturais e sócio-económicos. Portanto, resultados casados somente ocorrerão por conta exclusiva dos eleitores, isto é, quando coincidirem os interesses da maioria do eleitorado na escolha de candidato e partido(s), do mesmo quadrante politico-ideológico, para todos os cargos em disputa. Neste caso, há, por parte de muitos eleitores, uma escolha consciente para uma determinada configuração institucional, o que vai, em muitos casos, contra as preferências partidárias dos mesmos.

    Muitos países realizam eleições para cargos diferenciados no mesmo dia, porém, nem sempre, os resultados são casados, isto é, nem sempre verifica-se situações em que candidatos de um único partido conseguem vitórias simultaneamente para todos os cargos em disputa. Este é o caso do Brasil em que se realizam cinco eleições num único dia. Por outro lado, eleições para cargos diferenciados em períodos distintos nem sempre resultam em vitórias de candidatos ou partidos opostos, para cada um dos cargos em disputa, ou seja, resultados solteiros. Em França, antes de 2002, o PR tinha um mandato de sete anos e o parlamento um mandato de cinco anos, mas ocorreram períodos alternados de governos divididos e de governos unificados. Aliás, desde 2002, os franceses reduziram o mandato do PR e aproximaram as duas eleições, com oito semanas de distância. Em Portugal, onde existe um largo intervalo entre as eleições legislativas e presidenciais, temos observado uma alternância entre governos divididos e governos unificados[i]. Em Cabo Verde, desde 1991, de eleições semi-casadas, têm surgido resultados casados porque a maioria dos eleitores vêm respondendo favoravelmente aos apelos dos candidatos presidenciais, apoiados pelos partidos vencedores das legislativas, a favor de governos unificados, alegadamente por serem situações mais favoráveis à estabilidade governativa.

   O actual figurino de proximidade das duas eleições foi visto como consensual pelos actores políticos envolvidos, na altura da transição democrática, apesar da discordância, entre os mesmos, quanto à ordem das eleições. Desde então, que se saiba, o actual figurino não colocou problemas para a estabilidade governativa. Dada a proposta em apreço, apetece perguntar se a estabilidade passou a ser um empecilho para o país. Afinal tal estabilidade é um objectivo perseguido por todos os governos caboverdianos e por todos os actores políticos caboverdianos, por ser um recurso estratégico para a credibilização e viabilização do país a nível nacional e internacional. Porém, a estabilidade não é prerrogativa exclusiva de governos unificados. O drama nesta proposta está justamente no facto de muitos não perceberem que se pode, perfeitamente, ter estabilidade governativa e arbitragem a coexistirem com o actual figurino, porque a arbitragem não significa, necessariamente, instabilidade política e governativa. Veja-se o caso da crise ocorrida em 2000, com a intervenção arbitral de Mascarenhas Monteiro, demonstrando que os actuais dispositivos constitucionais para a arbitragem política, por parte do PR, são suficientes para os actos políticos do mesmo.

    Ademais, tal proposta, porque introduz mais um ciclo eleitoral distinto e intermediário, colide com o questionamento que se tem feito ao facto de termos ciclos eleitorais sucessivos, com os seus custos financeiros para o erário público e custos físicos para os eleitores, sendo estes últimos uma das possíveis razões do aumento da taxa de abstenção nas presidenciais. Uma outra crítica aponta que ciclos eleitorais sucessivos e encadeados (legislativas/presidenciais/municipais) têm levado os governantes centrais e locais a tomarem medidas de política meramente eleitoralistas e não medidas de fundo e de longo alcance que correspondam às reais necessidades da população. Tais críticas levam-me a defender que as duas eleições deveriam, pelo contrário, ocorrer simultaneamente, num mesmo dia, com boletins diferentes, pois, ganhar-se-ia tempo para se dedicar à governação efectiva e substantiva e ter-se-ia menos tempo de tensão eleitoralista, além do que evitar-se-ia desperdícios de recursos e esforços vários.

    Ora, o actual figurino pode ser alterado, pela escolha dos eleitores, por uma situação de um governo minoritário ou de coligação. Em ocorrendo este cenário, tanto poderá acontecer que o eleitorado escolha um candidato a PR proveniente das fileiras do partido do governo minoritário ou de um dos partidos da coligação, de modo a dar maiores credenciais ao governo, quanto poderá acontecer que escolha um candidato a PR proveniente das fileiras de um partido da oposição ou um independente. Neste quadro, umas, possíveis, eleições antecipadas, decorrentes desta situação, descasaria definitivamente os resultados.

     Esta parece ser uma questão que, numa circunstância, foi percebida como adequada e consensual, está, ser percebida como não adequada, para, circunstancialmente, se inscrever na lei um figurino diferente. Não faz sentido inscrever-se na lei alterações, baseadas em pressuposições e palpites casuísticos (quando certos interesses deixam de ser satisfeitos), que a dinâmica socio-política encarregar-se-á de solapar. Torna-se imperativo evitar criar, desnecessariamente, situações de instabilidade institucional.

    O drama tem sua origem na não percepção de que o maior ou menor poder de arbitragem política decorre, não da inscrição na lei do afastamento das duas eleições em causa, mas dos resultados eleitorais a nível parlamentar e da personalidade do PR, da sua posição face aos partidos, do relacionamento com o PM e da interpretação que o PR fizer sobre os desafios sócio-políticos e sócio-económicos que o país enfrenta a cada momento.

    Uma coisa é certa! A situação de governo dividido ou unificado é ditada, única e exclusivamente, pela escolha dos eleitores. A estabilidade governativa e uma arbitragem política consequente, dependem da atitude dos actores políticos. Por fim, mais uma vez, vale chamar atenção que a proposta discutida aqui, não teria razão de ser no contexto de um sistema de governo parlamentarista, visto que, neste, o Chefe de Estado/PR seria escolhido pelo parlamento ou seria um monarca hereditário. (Artigo publicado no Jornal Horizonte, em 15/03/2007)

    Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Politico


Endnotes: FIGUEIREDO, Marcus. (1994), “Competição eleitoral: eleições casadas, resultados solteiros”, Monitor Público, 2: 21-27; GSCHWENG, Thomas and LEUFFEN, Dirk. (2005), "Divided We Stand - Unified We Govern?? Cohabitation and Regime Voting in the 2002 French Elections". British Journal of Political Science, 35: 691-712; FRAIN, Maritheresa. (1995), "Relações entre o Presidente e o Primeiro Ministro em Portugal: 1985-1995", Análise Social, 30: 653-678.

O que é parlamentarismo mitigado?