quinta-feira, 29 de março de 2007

O "caso Dreyfus" e a carta de Zola (III)

O escritor Émile Zola, que teve de fugir para a Inglaterra para não ser preso, e voltou para a França em 1899, morreu em 29 de setembro de 1902, sem ter visto a reabilitação de Dreyfus, pronunciada em 1906. A França e o mundo nunca mais seriam os mesmos depois do Caso Dreyfus. A mobilização da opinião pública, pelo uso dos meios de comunicação de massa, tornou-se uma arma política poderosa e começou a ser praticada nos mais diversos cantos do planeta e pelos mais diversos motivos. A carta de Zola Paris, 13 de janeiro de 1898 Carta a M. Félix FaurePresidente da República Francesa Senhor, Permiti-me que, agradecido pela bondosa acolhida que me dispensou, preocupe-me mais com a vossa glória e vos diga que vossa estrela, tão feliz até hoje, está ameaçada pela mancha mais vergonhosa e inapagável. Saístes são e salvo de baixas calúnias e conquistastes corações. (...) Mas que mancha de lodo sobre o vosso nome pode imprimir este abominável processo Dreyfus! Desde logo um Conselho de Guerra se atreve a absolver a Esterhazy, numa bofetada suprema em toda a verdade, em toda a justiça. E não há remédio; a França vai conservar esta mancha e a história vai registrar que semelhante crime social foi cometido ao amparo da vossa presidência. Já que se agiu sem razão, falarei. É meu dever: não quero ser cúmplice. Todas as noites eu veria o espectro do inocente que expia cruelmente torturado, um crime que não cometeu. Por isso me dirijo a vós gritando a verdade com toda a força da minha rebelião de homem honrado. Estou convencido de que ignorais o que ocorre. Mas a quem denunciar as infâmias desta turba de malfeitores, de verdadeiros culpados, senão ao primeiro magistrado do país?! (...) Antes de tudo, a verdade sobre o processo e a condenação de Dreyfus. (...) Procedeu-se a um minucioso registro, examinando-se as caligrafias. Aquilo era como um assunto de família e se buscava o traidor nos mesmos escritórios para surpreendê-lo e expulsá-lo. A partir do momento em que uma leve suspeita recaiu sobre Dreyfus, aparece o comandante Paty de Clam, que se esforça para confundi-lo e fazê-lo confessar. Aparece também o ministro da Guerra, o general Mercier, cuja inteligência deve ser muito mediana, o chefe do Estado Maior, general Boisdeffre, que por certo cedeu à sua paixão clerical, e o general Gonse, cuja consciência elástica pode acomodar-se a muitas coisas. O comandante Paty de Clam prende Dreyfus e o deixa incomunicável. Corre depois em busca da senhora Dreyfus e lhe infunde o terror, prevenindo-a de que se falar sobre o assunto, seu marido estará perdido. De sua parte o infeliz proclama em alaridos a sua inocência, enquanto a instrução do processo se faz como a crônica do século XV, em meio ao mistério, com uma terrível complexidade de expedientes, tudo baseado numa suspeita infantil, na nota suspeita... (...) Dreyfus conhece várias línguas: é um crime; em sua casa não encontram papéis comprometedores: é um crime; algumas vezes visita sua terra: é um crime; e trabalhador, tem ânsia de saber: é um crime; não se perturba: é um crime. Tudo é crime, sempre crime. Falaram-nos de 14 acusações e não aparece mais que uma: a nota manuscrita suspeita. Os peritos não estão de acordo e um deles, M. Gobert, foi atropelado militarmente porque se permitia opinar em contra o que se desejava. Assim, pois, somente restava a nota suspeita, acerca da qual os peritos não estavam de acordo.(....) Para justificar a condenação fala-se da existência de um documento secreto, arrasador, um documento que não se pode publicar e que justifica tudo e ante o qual todos devemos nos inclinar. (...) O primeiro Conselho de Guerra pode ter-se equivocado, mas o segundo mentiu. (....) Por isso, repito, Dreyfus não pode ser inocente sem que todo o Estado Maior apareça como culpado. (....) Tal é a verdade, senhor presidente.(...) Não creia V., Exa. Que eu desespero do triunfo. Eu repito com uma certeza que não permite a menor vacilação: a verdade avança e nada poderá detê-la. Quanto mais duramente se oprime a verdade, mais força ela ganha, e a explosão será terrível. Veremos como se prepara o mais ruidoso dos desastres. Senhor presidente, concluo, que já é tempo: Eu acuso o Ten. Coronel Paty de Clam, como agente do erro judicial e por haver defendido sua obra nefasta por três anos com maquinações insanas e culpadas. Eu acuso o general Mercier por haver-se tornado cúmplice, ao menos por fraqueza, de uma das maiores iniqüidades do século. Eu acuso o general Billot de haver tido em suas mãos as provas da inocência de Dreyfus, e não as haver utilizado, fazendo-se, portanto, culpado pelo crime de lesa-humanidade e de lesa-justiça, com o fim político de salvar o Estado Maior comprometido. Eu acuso o general Boisdeffre e o general Gonse por tornarem-se cúmplices do mesmo crime, um por fanatismo clerical e outro por espírito de corpo, que faz dos escritórios do Ministério da Guerra uma arca santa e inatacável. Eu acuso o general Pellieux e o comandante Ravary por haverem fabricado uma informação infame, uma informação parcialmente monstruosa, na qual o segundo lavrou o imperecível monumento de sua torpe audácia. Eu acuso os três peritos calígrafos, os senhores Belhomme, Varinard e Couard por seus pareceres enganadores e fraudulentos, a menos que um exame médico os declare vítimas de uma cegueira dos olhos ou do juízo. Eu acuso o Ministério da Guerra por haver feito na imprensa, particularmente no L' É Clair e no L'Echo de Paris, uma campanha abominável, enganando a opinião pública para cobrir a sua falta. Eu acuso o primeiro Conselho de Guerra por ter condenado um acusado, com fundamento num documento secreto. E Eu acuso o segundo Conselho de Guerra por haver coberto esta ilegalidade, cometendo o crime jurídico de absolver conscientemente um culpado (Esterhazy). Eu não ignoro que ao formular estas acusações atraio sobre mim os artigos 30 e 31 da Lei de Imprensa, que se referem aos delitos de difamação. Voluntariamente ponho-me à disposição dos Tribunais. Um só sentimento me move: o desejo de que se faça luz. Meu ardente protesto nada mais é que um grito de minha alma. Que se atrevam a levar-me aos Tribunais e me julguem publicamente. Assim espero. Émile ZolaParis, 13 de janeiro de 1898 Por Francisco Ferraz (site: politicaparapoliticos)

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