domingo, 26 de abril de 2009

O que é parlamentarismo mitigado?

Eleições Separadas? Quem Ganha?

    A Constituição de um país define as instituições pelas quais o país se governa e estabelece a própria relação entre os cidadãos do país e as estruturas institucionais. Como tal é um documento político fundamental que estabelece os direitos e os deveres dos cidadãos e das instituições do Estado e reflete, também, o contexto e a forma pela qual a sociedade deseja ser governada. O desenho ou a reforma da Constituição pode jogar um papel crucial para o avanço e a sustentabilidade dos sistemas democráticos, assegurando mecanismos adequados para gerir conflitos dentro dos limites da coexistência pacífica e promovendo consensos em torno de valores fundamentais. Trata-se de um processo fundamentalmente político de promoção do interesse comum e não de um processo meramente legalístico (e tecnicamente solitário de especialistas em direito) de harmonização de interesses particulares conflitantes e de curto prazo. Espera-se, contudo, que o desenho ou revisão da Constituição seja o resultado de um debate alargado na sociedade, para que o processo seja legítimo e sirva à causa da estabilidade e da democracia. Como em todo o processo do debate político haverá aqueles com interesses a serem promovidos ou protegidos. É, evidentemente, legítimo e, na verdade, desejável que se encoraja o debate constitucional centrado em visões de longo prazo. É também inevitável que interesses sectoriais e de curto prazo acabem afetando o debate.
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    Não me parece que o corrente debate sobre a revisão constitucional, em Cabo Verde, esteja a ser efetivamente ampla. Tem sido dominado pelos actores político-partidários, com pouco envolvimento e iniciativa da sociedade civil, como tem sido prática desde o período da transição política. O facto de que com a abertura do período da revisão constitucional em 2004 não ter havido um debate continuado e consistente e, inclusivamente, de ter sido criada, pela Assembleia Nacional, uma Comissão Eventual para a revisão que terminou o mandato sem ter apresentado resultados palpáveis …, é sintomático.

    As alterações de determinados dispositivos constitucionais são aconselháveis quando os seus preceitos têm efeitos negativos para a sociedade e para o sistema político como um todo. Numa situação de “normalidade” institucional como a nossa, as revisões devem ser pontuais e feitas na base das que deram certo, numa perspectiva correctiva do que se provou não funcionar, visando o aperfeiçoamento da nossa democracia. Um dos pontos propostos para o período da revisão em curso diz respeito ao alargamento da distância temporal entre as eleições legislativas e presidenciais. É o assunto que aqui retomo para discussão, numa perspectiva de perdas e ganhos político-institucionais para o sistema democrático cabo-verdiano.

    Antes de tudo, deve-se ter em conta que tal proposta vai introduzir, de forma mais explícita, mais um ciclo eleitoral intermédio (intensificando o calendário eleitoral), que teria implicações na comparência eleitoral porque constitui um elemento de cansaço e pode provocar desinteresse junto dos eleitores, aumentando da taxa de abstenção eleitoral, com implicações no grau de legitimidade social dos eleitos. Além disso, constituiria um custo adicional, em termos financeiros, para um país pobre como Cabo Verde, dependente da ajuda externa até mesmo para a realização das eleições. Sabe-se que a preparação de cada eleição exige um grande esforço para a angariação de recursos financeiros, humanos e logísticos. Recursos esses que, se poupados, podem ser direcionados para outras dimensões necessárias para o reforço das nossas instituições democráticas ou aplicados em outros sectores do desenvolvimento do país.

    Estaríamos a viver todo o período de intervalo entre as duas eleições em ritmo de campanha eleitoral, de 3 a 6 meses, com as instituições a funcionarem a meio gás. O que constitui um custo adicional para a Administração do Estado (com a baixa de produtividade), visto que se tem verificado, com as sucessivas eleições, que boa parte de quadros dirigentes principais e intermédios têm se envolvido cada vez mais nas campanhas eleitorais. O maior distanciamento não exclui a possibilidade do partido governante desenvolver toda uma estratégia governativa e de comunicação que favoreça a promoção do candidato presidencial que escolher para apoiar, mantendo o efeito contágio. Tal situação daria razão à crítica de que ciclos eleitorais sucessivos e encadeados (legislativas/presidenciais/municipais) têm levado os governantes centrais e locais a tomarem medidas de política meramente eleitoralistas e não medidas de fundo e de longo alcance que correspondam às reais necessidades da população. Assim, não ganhamos!

    Admitindo a ocorrência do efeito contágio, ela não será eliminada com maior espaçamento das eleições. O melhor cenário para evitá-lo seria casar definitivamente as duas eleições. Contudo, deve-se antecipar a votação no seio da diáspora, considerando-se as diferenças dos fusos horários. A proposta de redução do mandato da legislatura redundaria num efectivo afastamento das eleições, mas com prejuízo para o tempo hábil necessário para um governo implementar a sua política, particularmente num país como Cabo Verde onde, por falta de recursos vários, os processos de planeamento e de execução de políticas públicas são, ainda, deficientes e lentos. Ademais, estudos comparados não mostram que haja uma tendência mundial para diminuição das legislaturas para quatro anos, como se pretende crer entre nós. Por exemplo, a França diminuiu o tempo do mandato do Presidente da República (PR) igualando-o ao da legislatura, sem diminuir o tempo desta. Algumas democracias presidencialistas e parlamentaristas vêm discutindo o aumento do mandato dos seus executivos, para superior a quatro anos.

    Os aspectos acima apontados constituem custos para a qualidade da democracia. Mais, se um dia tivermos uma situação de eleições antecipadas que voltassem a aproximar, casando, os dois actos eleitorais, o que faríamos? Um novo distanciamento, via revisão?

    Se existe algum receio de que o actual figurino, em termos de calendário, com eleições semi-casadas, que têm favorecido o dito efeito contágio, possa prejudicar as expectativas e as estratégias de algum dos candidatos, tal receio é ilusório ou fantasmagórico. As eleições são decididas pelos eleitores independentemente dos calendários. Que não hajam dúvidas sobre isso! Sem esquecer as polémicas do processo eleitoral, pergunto: o que explica a vitória de Carlos Veiga a nível do território nacional nas eleições presidenciais de 2001, embora tenha perdido no seio da comunidade emigrada? Foi a proximidade das duas eleições ou uma escolha explícita do eleitorado? Com o mesmo calendário estivemos quase experimentar uma situação ou cenário em que o PR seria alguém que tivesse saído do principal partido da oposição ao governo do PAICV.

    A maioria dos eleitores manifestaram claramente a escolha do candidato presidencial mais preferido e a escolha dessa maioria constitui também a escolha de uma configuração de relações institucionais e de poder entre titulares dos órgãos de soberania, numa perspectiva de cenário de uma provável cooperação e estabilidade nas relações institucionais entre os mesmos, sem descurar a assunção das responsabilidades políticas de cada um, particularmente do PR em termos de arbitragem e moderação políticas. Para efeitos da escolha do cenário o eleitorado estará a considerar o perfil e o percurso político dos candidatos, bem como os apelos dos candidatos e dos respectivos partidos de apoio. Esses apelos fazem parte do jogo político, do ponto de vista da estratégia para a conquista do voto. Acredito que os eleitores fazem a avaliação prospectiva dos cenários políticos que desejam ver materializados com os seus votos. A vitória eleitoral de Carlos Veiga no território nacional em 2001 pode ser percebido como indício do esboço de alguma tendência na preferência do eleitorado nacional mais para um cenário de governo e presidência da República de campos político-ideológicos distintos.

    A natureza estatuária do cargo presidencial não é afectada, pelas eleições legislativas. Porém, o estilo e o padrão do exercício do cargo podem ser afectados, mas pela personalidade do candidato eleito, pela sua relação com a maioria parlamentar e pela sua percepção sobre os desafios do país. E, porque não, pelos seus interesses políticos pessoais? É o titular quem define o estilo do exercício do cargo. Resta saber até que ponto e em que sentido o estilo do titular afeta os processos político e democrático.

    A natureza ou o estatuto suprapartidário é uma exigência da sociedade consubstanciada na Constituição e é um princípio que deve ser materializado pelos titulares do cargo presidencial. Se for solapado, terá conseqüências políticas. O cumprimento deste estatuto não decorre do resultado das eleições e nem é afectado pelo maior ou menor distanciamento entre as mesmas. Cabe sempre ao titular do cargo presidencial respeitar os princípios subjacentes ao seu estatuto suprapartidário, de modo a fazer as melhores arbitragem e moderação possíveis no sistema político, na perspectiva do desenvolvimento, estabilidade e consolidação democráticos. Assim, ganharemos todos!(Artigo publicado no Jornal A Semana N.º 889, de 24/04/2009, p. 26).

     Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Político

Eleições separadas para resultados solteiros?

Sobre a escolha dramática entre estabilidade governativa e mais arbitragem política


O período aberto para a revisão constitucional, em 2004, trouxe um leque amplo de propostas. Entre as várias propostas de reforma apresentadas destaco e discuto, aqui, a que diz respeito ao aumento do intervalo temporal entre as eleições legislativas e presidenciais. Esta proposta pretende acabar definitivamente com o carácter semi-casado das duas eleições, visando produzir resultados solteiros, em que a maioria parlamentar e o governo, que suportar, teriam “cor partidária” diferente da do Presidente da República (PR).

    Esta proposta traz consigo alguns pressupostos. Supostamente, com esta proposta pretende-se dar tempo ao eleitorado de avaliar o desempenho do governo escolhido pelo parlamento eleito e só depois ajuizar sobre que candidato eleger para PR. Alegadamente, o figurino proposto poderia evitar que o eleitorado escolhesse, por arrastamento, votar num candidato a PR da mesma cor política que o partido vencedor das legislativas, criando condições para que se tivesse um PR mais distanciado do partido do governo, com mais disponibilidade para arbitrar, de facto, o sistema político, com isenção e sem cumplicidade com o partido governante. A proposta teria, também, alguma preocupação de dissipar a tendência de hegemonia de um partido dentro do nosso sistema político, particularmente no quadro das instituições do Estado. Acredita-se que com esta proposta criar-se-ia condições que permitiriam uma melhor tradução do pluralismo político existente na sociedade caboverdiana.

    Questiono a validade e pertinência dessa proposta, por uma série de razões que se arrola abaixo:

    Primeiro, porque uma situação de governo dividido (coabitação) ou de governo unificado é o resultado da escolha e preferência do eleitorado. Só o eleitorado, e não o decreto, nos permitirá ter uma situação de governo dividido ou não. Como? Elegendo um presidente de cor politica diferente da do Primeiro Ministro (PM) ou não dando maioria absoluta para nenhum dos partidos em disputa. Ou seja, a preferência dos eleitores não decorre das legislações, mas sim de factores político-culturais e sócio-económicos. Portanto, resultados casados somente ocorrerão por conta exclusiva dos eleitores, isto é, quando coincidirem os interesses da maioria do eleitorado na escolha de candidato e partido(s), do mesmo quadrante politico-ideológico, para todos os cargos em disputa. Neste caso, há, por parte de muitos eleitores, uma escolha consciente para uma determinada configuração institucional, o que vai, em muitos casos, contra as preferências partidárias dos mesmos.

    Muitos países realizam eleições para cargos diferenciados no mesmo dia, porém, nem sempre, os resultados são casados, isto é, nem sempre verifica-se situações em que candidatos de um único partido conseguem vitórias simultaneamente para todos os cargos em disputa. Este é o caso do Brasil em que se realizam cinco eleições num único dia. Por outro lado, eleições para cargos diferenciados em períodos distintos nem sempre resultam em vitórias de candidatos ou partidos opostos, para cada um dos cargos em disputa, ou seja, resultados solteiros. Em França, antes de 2002, o PR tinha um mandato de sete anos e o parlamento um mandato de cinco anos, mas ocorreram períodos alternados de governos divididos e de governos unificados. Aliás, desde 2002, os franceses reduziram o mandato do PR e aproximaram as duas eleições, com oito semanas de distância. Em Portugal, onde existe um largo intervalo entre as eleições legislativas e presidenciais, temos observado uma alternância entre governos divididos e governos unificados[i]. Em Cabo Verde, desde 1991, de eleições semi-casadas, têm surgido resultados casados porque a maioria dos eleitores vêm respondendo favoravelmente aos apelos dos candidatos presidenciais, apoiados pelos partidos vencedores das legislativas, a favor de governos unificados, alegadamente por serem situações mais favoráveis à estabilidade governativa.

   O actual figurino de proximidade das duas eleições foi visto como consensual pelos actores políticos envolvidos, na altura da transição democrática, apesar da discordância, entre os mesmos, quanto à ordem das eleições. Desde então, que se saiba, o actual figurino não colocou problemas para a estabilidade governativa. Dada a proposta em apreço, apetece perguntar se a estabilidade passou a ser um empecilho para o país. Afinal tal estabilidade é um objectivo perseguido por todos os governos caboverdianos e por todos os actores políticos caboverdianos, por ser um recurso estratégico para a credibilização e viabilização do país a nível nacional e internacional. Porém, a estabilidade não é prerrogativa exclusiva de governos unificados. O drama nesta proposta está justamente no facto de muitos não perceberem que se pode, perfeitamente, ter estabilidade governativa e arbitragem a coexistirem com o actual figurino, porque a arbitragem não significa, necessariamente, instabilidade política e governativa. Veja-se o caso da crise ocorrida em 2000, com a intervenção arbitral de Mascarenhas Monteiro, demonstrando que os actuais dispositivos constitucionais para a arbitragem política, por parte do PR, são suficientes para os actos políticos do mesmo.

    Ademais, tal proposta, porque introduz mais um ciclo eleitoral distinto e intermediário, colide com o questionamento que se tem feito ao facto de termos ciclos eleitorais sucessivos, com os seus custos financeiros para o erário público e custos físicos para os eleitores, sendo estes últimos uma das possíveis razões do aumento da taxa de abstenção nas presidenciais. Uma outra crítica aponta que ciclos eleitorais sucessivos e encadeados (legislativas/presidenciais/municipais) têm levado os governantes centrais e locais a tomarem medidas de política meramente eleitoralistas e não medidas de fundo e de longo alcance que correspondam às reais necessidades da população. Tais críticas levam-me a defender que as duas eleições deveriam, pelo contrário, ocorrer simultaneamente, num mesmo dia, com boletins diferentes, pois, ganhar-se-ia tempo para se dedicar à governação efectiva e substantiva e ter-se-ia menos tempo de tensão eleitoralista, além do que evitar-se-ia desperdícios de recursos e esforços vários.

    Ora, o actual figurino pode ser alterado, pela escolha dos eleitores, por uma situação de um governo minoritário ou de coligação. Em ocorrendo este cenário, tanto poderá acontecer que o eleitorado escolha um candidato a PR proveniente das fileiras do partido do governo minoritário ou de um dos partidos da coligação, de modo a dar maiores credenciais ao governo, quanto poderá acontecer que escolha um candidato a PR proveniente das fileiras de um partido da oposição ou um independente. Neste quadro, umas, possíveis, eleições antecipadas, decorrentes desta situação, descasaria definitivamente os resultados.

     Esta parece ser uma questão que, numa circunstância, foi percebida como adequada e consensual, está, ser percebida como não adequada, para, circunstancialmente, se inscrever na lei um figurino diferente. Não faz sentido inscrever-se na lei alterações, baseadas em pressuposições e palpites casuísticos (quando certos interesses deixam de ser satisfeitos), que a dinâmica socio-política encarregar-se-á de solapar. Torna-se imperativo evitar criar, desnecessariamente, situações de instabilidade institucional.

    O drama tem sua origem na não percepção de que o maior ou menor poder de arbitragem política decorre, não da inscrição na lei do afastamento das duas eleições em causa, mas dos resultados eleitorais a nível parlamentar e da personalidade do PR, da sua posição face aos partidos, do relacionamento com o PM e da interpretação que o PR fizer sobre os desafios sócio-políticos e sócio-económicos que o país enfrenta a cada momento.

    Uma coisa é certa! A situação de governo dividido ou unificado é ditada, única e exclusivamente, pela escolha dos eleitores. A estabilidade governativa e uma arbitragem política consequente, dependem da atitude dos actores políticos. Por fim, mais uma vez, vale chamar atenção que a proposta discutida aqui, não teria razão de ser no contexto de um sistema de governo parlamentarista, visto que, neste, o Chefe de Estado/PR seria escolhido pelo parlamento ou seria um monarca hereditário. (Artigo publicado no Jornal Horizonte, em 15/03/2007)

    Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Politico


Endnotes: FIGUEIREDO, Marcus. (1994), “Competição eleitoral: eleições casadas, resultados solteiros”, Monitor Público, 2: 21-27; GSCHWENG, Thomas and LEUFFEN, Dirk. (2005), "Divided We Stand - Unified We Govern?? Cohabitation and Regime Voting in the 2002 French Elections". British Journal of Political Science, 35: 691-712; FRAIN, Maritheresa. (1995), "Relações entre o Presidente e o Primeiro Ministro em Portugal: 1985-1995", Análise Social, 30: 653-678.

Semi-presidencialismo, sim!

    Após quinze anos de estabelecimento do regime democrático e catorze anos sobre a promulgação da Constituição de 1992, continua-se verificar manifestações de equívocos na classificação do nosso sistema de governo instituído pela mesma Constituição, o que leva a maiores dificuldades no conhecimento do mesmo e na melhor percepção sobre as potencialidades do seu funcionamento e as suas virtudes. Esses equívocos e dificuldades perpassam sectores importantes da nossa sociedade, desde juristas, intelectuais, políticos, jornalistas e demais fazedores de opinião.

    A manifestação dos equívocos tem-se traduzido no facto de a maioria esmagadora das opiniões irem no sentido de classificar o nosso sistema de governo como um sistema parlamentar ou parlamentar mitigado. Por outro lado, alguns manifestam uma posição hesitante na classificação do sistema, ora classificando-o como parlamentar, ora como semipresidencial, tomando os dois modelos como sendo a mesma coisa. Ledo engano! Além disso, as justificações apresentadas para tais classificações não são rigorosas e fundamentadas em termos científicos, de molde a se perceber e avaliar a real dimensão e o alcance dos poderes presidências no quadro do sistema de governo. A instituição presidencial é (e tem sido) fulcral nesse debate.

    Os equívocos revelam erros de interpretação que, muitas vezes, levam os actores políticos (e não só) a terem posicionamentos e atitudes que podem fazer perigar o funcionamento das instituições e a estabilidade governativa. O facto de se tomar o sistema de governo por parlamentar tem feito com que o Presidente da República seja, reiteradas vezes, percebido como tendo fracos poderes e até ser considerado um “corta-fitas”, por isso, às vezes, desconsiderado política e institucionalmente.

    Entretanto, poucos são os que, prontamente, classificam o nosso sistema de governo como sendo semipresidencial. Ora, eu faço parte daqueles que o classificam como um sistema de governo semipresidencial. Essa classificação faço-a com base na Constituição de 1992, considerando elementos teóricos e explicativos tomados da literatura política comparada, conforme pode ser observado num trabalho académico produzido em 2001[i]. Outro trabalho que se empenha em classificar o nosso sistema de governo como semipresidencial é o do Aristides Lima, publicado em 2004[ii].

    Ora bem, assumo que quando uma constituição estabelece um Presidente da República (Chefe de Estado) popularmente eleito para um mandato fixo, dotado de importantes poderes constitucionalmente prescritos, dividindo o poder executivo com um Primeiro-Ministro (Chefe do Governo) responsável perante o parlamento, temos um sistema semipresidencial. Ou seja, todo e qualquer sistema político democrático que adoptar uma estrutura organizacional de divisão de poderes com uma tal configuração de poder executiva bicéfala, institui um sistema de governo semi-presidencial[iii].

    O modelo semipresidencial é uma engenharia político-constitucional, relativamente recente, que combina elementos do parlamentarismo e do presidencialismo. Em linhas gerais, o parlamentarismo caracteriza-se por: eleição popular para o parlamento; o parlamento escolhe o Primeiro-Ministro (Chefe do Governo); o chefe do poder executivo e a sua equipa são dependentes da confiança do parlamento e podem ser demitidos do cargo por um voto de não confiança ou de censura dos parlamentares; as decisões governamentais mais importantes são tomadas pelo colectivo dos ministros; existência de uma fusão de poderes, significando não só que o executivo é dependente da confiança do legislativo, mas também que as mesmas pessoas podem, em alguns casos, ser membros do Parlamento e do Governo; o Presidente da República e o Primeiro-Ministro podem, em alguns casos, ter o poder de dissolver o Parlamento; existe um Chefe de Estado (um monarca ou um presidente) simbólico e cerimonial, escolhido pelo Parlamento, com poucos poderes e sem funções executivas. Por seu turno, o presidencialismo caracteriza-se basicamente por: eleição popular directa ou indirecta para o Presidente a República, para um mandato fixo, constitucionalmente prescrito; o Presidente da República é, geralmente, simultaneamente, o Chefe de Estado e o Chefe do Governo, podendo ter poderes constitucionais de fazer leis; o Presidente da República escolhe “livremente” os membros do seu Governo; as decisões mais importante nos sistemas presidencialistas poder ser tomadas pelo presidente, com ou sem, ou mesmo contra a sugestão da sua equipa; apresenta separação (das fontes de origem e sobrevivência) dos poderes do executivo e do legislativo, que são mutuamente dependentes, porém com a norma de que a mesma pessoa não pode servir simultaneamente em ambos; o Presidente da República não pode dissolver o legislativo, nem este pode destituir o Chefe de Estado, a não ser por falta grave, através do processo de impeachment.

    Esta nova fórmula de governo, a semipresidencial, propõe que deve haver um ponto de encontro entre o Presidente da República e o Parlamento, capaz de suavizar, evitar e, quando necessário, resolver conflitos. Este ponto intermediário seria o Governo, que deveria ser nomeado pelo Chefe de Estado, mas seria, todavia, responsável perante o Parlamento. O dever do Governo seria servir de elo entre ambas as instituições e contribuir para estabelecer os compromissos necessários.

    A nova fórmula introduziu a eleição popular do Presidente da República, a quem foi concedido mais poderes que os do Chefe de Estado do sistema parlamentarista, mas menos que os do sistema presidencialista, implicando, automaticamente, na limitação dos poderes do Parlamento. A designação “semipresidencialista” em vez de “semiparlamentarista” deve-se ao facto da vontade popular ter duas expressões, tal qual no presidencialismo, bem como ao facto do Chefe de Estado ser dotado de algumas prerrogativas típicas daquele sistema, como: o poder de veto, participar na nomeação de altos funcionários do Estado, comandar o exercito, controlar a politica externa, solicitar a verificação da constitucionalidade das leis, presidir a reunião do Conselho de Ministros, etc. Alguns desses poderes são executivos, outros legislativos, embora com um carácter reactivo, mas nem por isso deixam de ser importantes na influenciação do processo governativo.

    Portanto, não tem cabimento usar a expressão “parlamentar(ismo)” ou “parlamentarismo mitigado” para classificar o nosso sistema de governo. Aliás, não existe concepção teórica e muito menos experiências empíricas de “sistema de governo parlamentar mitigado”. O dito “parlamentarismo mitigado” (ou racionalizado) constitui apenas uma variante prática (ou de práticas), no que tange às relações entre o legislativo e o executivo, no quadro do sistema de governo parlamentar e/ou, exclusivamente, na vertente parlamentar de funcionamento do sistema de governo semipresidencial.

    O sistema de governo semipresidencial é considerado um modelo misto vantajoso e bastante flexível, capaz de oferecer mecanismos para mitigar os problemas que, correntemente, surgem nos outros dois, podendo, por conseguinte, gerar mais estabilidade. Porém, o semipresidencialismo não é um presidencialismo moderado nem um parlamentarismo incrementado. É uma forma de governo em si mesma, propositadamente construída com vista a obter méritos do presidencialismo e a evitar defeitos do parlamentarismo.

   Contudo, importa reter que da mesma forma que os outros dois modelos, o sistema semipresidencial apresenta variantes em termos de estrutura constitucional (traduzindo-se em maiores ou menores poderes formais para cada um dos órgãos de soberania) e em termos de práticas políticas (com maior ou menor influência efectiva do Presidente da República no processo governativo), em função da interacção entre factores político-institucionais, factores socio-estruturais e históricos, em cada país.

    É imperativo considerarmos e aceitarmos, de uma vez por todas, que o nosso sistema de governo é semipresidencial. Senão, estaremos a insistir no equívoco. Devemos estudá-lo mais para livrarmos dos fantasmas e das fantasias no que respeita às relações entre as diferentes instituições.

    Finalmente, importa salientar que apenas no quadro constitucional semipresidencial seria possível haver cinco candidatos concorrentes para o cargo presidencial. Tal facto não ocorreria no sistema parlamentar, visto que este não oferece tantos incentivos em termos de prerrogativas constitucionais, importantes, para o cargo presidencial. (Artigo publicado no Jornal Horizonte, em 07/09/2006)

     Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Político


Endenotes:[i] COSTA, Daniel Henrique C. G.. (2001), “O Semipresidencialismo em Cabo Verde:1991/2000”. Dissertação de Mestrado, IUPERJ, Rio de Janeiro. Ver em www.cniunicv.cv[ii] LIMA, Aristides R. (2004), Estatuto Jurídico-constitucional do Chefe de Estado: um estudo de direito comparado. Praia, Alfa Comunicações. [iii] DUVERGER, Maurice. (1980), “A New Political System Model: Semi-presidential Government”. European Journal of Political Research, vol.8, pp.165-87.

Virtudes e Perigos do Semi-presidencialismo

    Dada a desejabilidade normativa da democracia como uma forma de governo, os estudiosos tem dado uma atenção renovada para os arranjos institucionais da democracia como a chave para o entendimento da estabilidade democrática. A atenção tem-se voltado para as virtudes e vícios ou perigos dos sistemas de governo, a partir de uma perspectiva de governabilidade e estabilidade democrática. Sabe-se que qualquer um dos três sistemas de governo democrático apresenta perigos e virtudes, inerentes às suas estruturas organizativas, mas também presentes nos seus modos de funcionamento.

   Em Cabo Verde os aspectos atinentes aos perigos e as virtudes dos sistemas de governo democráticos são questões que estiveram presentes entre os actores políticos no inicio dos anos 90, no âmbito das discussões em torno da formulação da Constituição que viria a ser promulgada em 1992. De facto, a preocupação com a estabilidade governativa foi um facto marcante na altura. Se nos remetermos ao passado, podemos perceber que devido às circunstâncias do momento da abertura e da transição, o actual figurino do sistema de governo adoptado em Cabo Verde - o semi-presidencial - foi percebido como a melhor solução para a estabilidade governativa do país. Os principais actores que participaram do debate em torno da questão constitucional em Cabo Verde sempre estiveram cientes dos perigos, tanto do presidencialismo, dados os exemplos africanos de regimes presidenciais que se desembocaram em regimes ditatoriais baseados na figura de líderes carismáticos, quanto do “parlamentarismo”, em parte, pelo próprio exemplo cabo-verdiano (e africano) de parlamentarismo excessivamente concentrado num único partido, o que gera forte autoritarismo do executivo na prática política[i].

   Concordo com António Mascarenhas Monteiro quando afirma, numa entrevista[ii], que a estabilidade politica de um pais não depende do sistema de governo formalmente definido, mas sim daquilo que os homens fizerem dele, ou seja, depende da forma como os actores políticos procederem no quadro do sistema estabelecido. Lapidarmente Mascarenhas Monteiro diz que: “Mais do que o texto constitucional é preciso confiar na boa vontade, no bom-senso e no sentido de responsabilidade dos homens. Qualquer texto constitucional serve a qualquer país desde que haja homens dispostos a respeitá-lo. Se as coisas funcionaram bem em Cabo Verde o mérito não é da Constituição mas dos actores da vida politica nacional” (…) “Desde que haja homens políticos conscientes dos seus deveres e com sentido de Estado. Se as coisas funcionaram bem, o mérito não é da Constituição; é dos homens. E quando falo de homens estou a falar do PR, do governo e dos partidos da oposição. O mérito é da nossa classe politica. Temos o país que temos graças aos actores da cena politica nacional”.

    Num sistema parlamentarista, quando o executivo perde a confiança do legislativo o governo cai e um novo gabinete, alinhado com os objectivos políticos da maioria legislativa, pode substituí-lo. Mas em caso de não haver partidos com maioria absoluta no parlamento pode ocorrer quedas sucessivas de governos e eleições antecipadas, traduzindo-se em instabilidade governativa. Neste caso, a instabilidade decorre da pérola do parlamentarismo que é o mecanismo de dissolução.

    Em franco contraste, num regime presidencialista, quando o executivo e o legislativo divergem sobre a direcção que a política deve tomar, toda o sistema é apanhado numa situação de impasse e consequente paralisia decisória. Para superar o impasse, cada um desses órgãos pode ser tentado a agir unilateralmente, com isso agravando a crise, o que pode, eventualmente, levar à intervenção militar como um poder moderador. O resultado final é a ruptura da democracia e a sua substituição por alguma forma de regime militar. Aqui, a crise decorre do elemento distintivo do presidencialismo que é o regime de separação de poderes.

    Os sistemas semi-presidencialistas são criticados, exactamente, porque as suas estruturas de autoridade dual, por inerência, podem dar origem a uma diarquia competitiva que facilmente pode-se transformar numa diarquia de confronto. O poder executivo é partilhado entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, e partilha por definição leva à ambiguidade. Não obstante, a legitimidade, o controle e a responsabilidade dos dois órgãos são fundamentalmente diferentes. A legitimidade do Primeiro-Ministro emana do corpo do legislativo e ele é mantido no cargo com a confiança do mesmo corpo, enquanto que a do Presidente da República possui maior autonomia em relação ao legislativo e sobrevive sem a sua aprovação. Aqui, percebe-se que uma das virtudes o semi-presidencialismo é poder desfrutar dos instrumentos fulcrais dos outros dois sistemas: a possibilidade de dissolução e o regime de separação de poderes. Estas duas características são capazes de criar tensões, teoricamente previsíveis e empiricamente verificáveis. Por exemplo, se o presidente resolver reivindicar a força da sua legitimidade, conferida por uma forte votação popular conseguida nas urnas, para se impor perante o executivo, essa atitude pode gerar conflitos, que podem fazer perigar a estabilidade e a consolidação democrática.

   Entretanto, o problema de “dupla legitimidade”, o principal problema teórico e político do presidencialismo, é mitigado sob o semi-presidencialismo dentro do próprio executivo. A diarquia evita o problema de impasse e conflito constitucional: (1) quando o partido ou coalizão partidária que apoia o Presidente da República ganha uma maioria no parlamento; (2) quando o Presidente da República concorda com a maioria no parlamento e permite ao Primeiro-Ministro exercer o poder (o primeiro ministro é, de fato, o chefe de executivo e o sistema pode operar com um pendor parlamentar); e (3) quando a “divisão constitucional de responsabilidades” entre o Chefe de Estado e o Primeiro-Ministro é clara e as prerrogativas ou domínios reservados são bem estabelecidos[iii]. Porém, tudo isso depende! Depende de factores de natureza pessoais e de factores de natureza institucionais. Por um lado, depende da personalidade do Presidente da República e da sua vontade (estratégica) de aceitar, ou não, a sua própria posição subordinada, face a um governo que recebe forte apoio da maioria parlamentar. Entretanto, nem por isso pode-se garantir que não possa haver situação de impasse. Por outro lado, depende de factores político-institucionais como a natureza do sistema partidário, a posição do Presidente da República face aos partidos e o alcance da prerrogativa de dissolução do Presidente da República.

    De tudo isto, cabe destacar que a vantagem do semi-presidencialismo, em relação aos outros dois sistemas de governo, está na sua maior flexibilidade, que pode traduzir-se no poder de arbitragem do Presidente da República, se este assumir um papel relevante no processo político, particularmente, por exemplo, no contexto de um parlamento extremamente fragmentado ou heterogéneo, com dificuldade na produção legislativa e no processo governativo. Nos casos do tipo, o Presidente da República, enquanto poder moderador, terá duas saídas: assumir a condução do processo político nomeando um governo de “inspiração presidencial”, caso não houver entendimento entre os partidos parlamentares na formação do governo, ou dissolver o parlamento e convocar eleições antecipadas, para ver se daí resultado um partido maioritário no parlamento.

    Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Político


Endenotes:[1] Jornal Voz di Povo, 31/03/1992, p.11. [i1] Jornal Horizonte, 18/02/1999. [1ii] COSTA, Daniel Henrique C. G.. (2001), “O Semipresidencialismo em Cabo Verde:1991/2000”. Dissertação de Mestrado, IUPERJ, Rio de Janeiro. Ver em www.cniunicv.cv.

A Flexibilidade do Semi-Presidencialismo

    Vários estudos já demonstraram que a definição correcta do semi-presidencialismo não é uma futilidade académica. O semi-presidencialismo é um sistema de governo dotado de dinâmica própria, distinta do parlamentarismo e do presidencialismo. Essa dinâmica foi adequadamente definida pelo politólogo francês Jean Massot como uma “diarquia hierárquica”[1]. Diarquia por que o Poder Executivo é exercido conjuntamente pelo Presidente da República (PR) e pelo Primeiro-Ministro (PR). Hierárquica porque, dependendo das circunstâncias políticas (composição do parlamento), o presidente pode “subordinar” o premier no que concerne à composição do governo e aos rumos das políticas do Estado, e vice-versa[2]. Aparentemente, falta aos que advogam a definição do sistema de governo cabo-verdiano como “parlamentar” e/ou “parlamentarismo mitigado” um conhecimento mais preciso do sistema de governo que propugnam e das variantes práticas do mesmo. Por conta dessa falta, a defesa que fazem do parlamentarismo e/ou parlamentarismo mitigado é frágil perante a análise dos dispositivos constitucionais (em perspectiva comparada) e perante a análise da prática política em Cabo Verde.

    O que segue abaixo é um esforço em termos de contributo para uma reflexão mais substancial sobre a dinâmica dos sistemas semi-presidencialistas em geral e para reflectirmos sobre os “Mundos Possíveis no Semi-presidencialismo Cabo-verdiano”[3].

    Vários autores, entre os quais Pasquino[4], já demonstraram que no semi-presidencialismo o Presidente da República não é o único titular do poder executivo, pois compartilha-o com o Primeiro-Ministro, em determinadas circunstâncias e em certas matérias. O PM é nomeado pelo PR, mas tem de recolher, se não a confiança, pelo menos a ausência de censura do parlamento. Em conclusão, o PM é duplamente responsável em relação a presidência da República e perante o parlamento. Aliás, ele, em determinados contextos e circunstâncias, pode pedir ao PR a dissolução do parlamento e, em certas condições, obtê-las. Por seu lado, o presidente pode recusar a dissolução do parlamento e nomear outro PM, que poderá governar se o parlamento a tal não se opuser, ou então aceitar dissolver o parlamento. Entretanto, temos que ter em conta que os limites para a dissolução variam entre países. Em termos concretos, um PM que detenha uma maioria que lhe permita governar não pedirá a dissolução do parlamento; e um presidente que preveja ou saiba que não obterá uma maioria parlamentar favorável não substituirá o PM nem tão pouco dissolvera o parlamento, sobretudo se algum eventual dissolução anterior já tiver dado lugar a uma maioria que lhe seja hostil.

    Com efeito, uma dissolução causada, por exemplo, pela divergência entre o presidente e um PM apoiado por uma maioria parlamentar, e que conduzisse, após uma nova consulta eleitoral, à repetição ou ao alargamento daquela maioria, resultaria numa séria derrota política e afectaria enormemente o prestigio do presidente. Obviamente, também no semi-presidencialismo os desfasamentos das eleições presidenciais e parlamentares podem levar a que o presidente eleito por uma certa maioria se encontre em funções simultaneamente com uma maioria parlamentar de cor diferente. Esta situação, que apresenta algumas semelhanças com o governo dividido do presidencialismo, designa-se por coabitação. Para remediar, o semi-presidencialismo oferece mais algumas saídas e mais alguma flexibilidade do que o presidencialismo.

    Poder-se-ia pensar que as saídas só funcionam a favor do presidente e que a flexibilidade só pode ser conseguida através da dissolução do parlamento. Mas no semipresidencialismo, em caso de coabitação, configuram-se dois elementos de atenuação de tensões e conflitos, um de natureza pessoal e outro de natureza institucional. O elemento pessoal é constituído pela ambição dos dois líderes em confronto. Se pretender ser (re)eleito, o presidente não forçará a coabitação a seu favor, para não parecer pouco respeitador da vontade do eleitorado que deu uma maioria parlamentar a partido ou partidos diferentes daqueles que apoiaram a sua eleição. O PM, por seu lado, se tiver alguma pretensão a candidatar-se à presidência da República, e não quiser causar problemas ao seu próprio partido, evitará igualmente forçar a situação. Estas duas ambições contrárias conseguirão contrabalançar-se mutuamente sem provocar a paralisia das instituições políticas. O segundo elemento que distingue a coabitação de um governo dividido típico do presidencialismo é de natureza político-partidária. O governo dividido no presidencialismo (às vezes sinónimo de paralisia decisória) ocorre quando o partido ao qual pertence o presidente em funções não possui maioria nos dois ramos do Congresso[5]. Se desviarmos a nossa atenção do sistema institucional e a fixarmos no sistema partidário, poderemos reparar que o semi-presidencialismo dispõe de alguns elementos de flexibilização e de distensão que o governo dividido não tem. São eles que permitem ao PM e ao seu governo funcionar, com o apoio do parlamento, mesmo quando a maioria parlamentar e a presidencial não coincidem entre si. O PM prevalece sobre o presidente graças à sua maioria parlamentar.

    Em França ao longo de vários anos, a coabitação fez coexistir um presidente eleito por uma maioria com um PM apoiado numa maioria parlamentar oposta àquela (1986-1988 e 1993-1995,). O último caso francês ocorreu, durante a presidência do gaulista Jacques Chirac, entre 1997 a 2000, com a eleição de uma maioria que levou o socialista Leonel Jospin ao Governo. Em Portugal, a coabitação de um presidente socialista e de um PM social-democrata (de centro-direita) durou ininterruptamente de 1987 a 1995. Essa situação repetiu-se com a eleição de um presidente socialista, Jorge Sampaio, e um PM social-democrata, Durão Barroso/Santa Lopes, entre 2003 e 2005 e a partir de 2005 com José Sócrates do PS e Cavaco Silva do PSD. Na Polónia, as maiorias parlamentares nunca foram inteiramente adversas ao presidente Walesa, mas também nunca se lhe subordinaram inteiramente. É possível afirmar que nem mesmo as coabitações mais complexas originaram, até hoje, problemas comparáveis aos do governo dividido e que as formas de governo semi-presidenciais, em presença de situações de maioria parlamentares estáveis, têm garantido, bastante melhor até do que o presidencialismo, a estabilidade dos Executivos e o seu bom funcionamento. Devido ao seu carácter flexível, o semi-presidencialismo parece mais capaz de produzir efectividade governamental do que o parlamentarismo e mais capaz de evitar impasse do que o presidencialismo. Por isso é que o semi-presidencialismo é apontado como uma óptima via para os países se livrarem de regimes - parlamentaristas ou presidencialistas - poucos eficientes para a implementação de políticas públicas ou para os países não democráticos efectuarem a transição para a democracia. O facto de a maioria das recentes democracias surgidas no mundo terem optado semi-presidencialismo, particularmente na Europa do Leste e na África, não é mera coincidência.

     Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Político 


Endnotes: [1] MASSOT, Jean. (1993), Chef de L’Etat et Chef du Government: Dyarchie et Hiérarchie. Paris, La Documentation Française. [2] AMORIM NETO, Octavio. (2000), “Semipresidencialismo!”, Jornal Estado de São Paulo, 26 de Janeiro. / [3] Titulo de um artigo nosso, no prelo. / [4] PASQUINO, Gianfranco. (1997), “Semi-Presidentialism: A political model at work”. European Journal of Political Research, vol.31, pp.128-137; Curso de Ciência Política (2002), Principia, Cascais. / [5] Veja-se a actual situação dos EUA com a Administração George W. Bush, em que os democratas detêm maioria nas duas câmaras. Ver também Jean Massot. (1993), Chefe de l`Etat et chef fu Gouvernement: Dyarchie et hiérarchie. Paris, La Documentaton Française.

O que é parlamentarismo mitigado?