segunda-feira, 24 de março de 2008

Elite Política e Sistema Partidário Cabo-verdiano (II)

    A integração dos dirigentes do PCD na lista do MpD e do PTS na do PAICV constitui uma situação polémica uma vez que a prática nos tem revelado que a rigidez da disciplina partidária, em Cabo Verde, não oferece espaço de manobra para deputados agirem, efectivamente, como independentes, no seio das bancadas parlamentares. Neste sentido, consta que, das negociações havidas, os dirigentes do PCD tiverem que se desvincular do partido para integrarem a lista do MpD, visto que a lei dos partidos políticos não prevê uma situação de mera inclusão/inscrição de um militante de um partido na lista de um outro partido, fora do âmbito de uma coligação bem definida. No caso do PTS parece que as negociações feitas implicam o respeito estrito ao programa político do PAICV, como condição para uma provável retribuição de apoio a candidatos do PTS, em futuras eleições. Contudo, quem nos garante que esses arranjos não redundarão numa extinção destes dois pequenos partidos? O debate que se trava em torno e dentro do PCD, pode nos levar a pensar que seja bem provável, tendo em conta a alegada necessidade de reunificação das famílias dos democratas contra o PAICV. Mas, também, o apoio aberto do Onésimo Silveira ao PAICV nas eleições autárquicas do Mindelo, em 2004, e a integração do mesmo na lista do PAICV para as legislativas de 2006, leva-nos a acreditar que seja algo muito provável. Esta probabilidade decorre do facto destes pequenos partidos funcionarem, fortemente, em torno de alguns poucos dirigentes.

    Os factos apontados acima têm provocado alguma perplexidade em certos sectores da sociedade, que os percebe como imorais e pouco éticos ou como “casamento envergonhado”. Os mesmos factos, no fundo, contribuem, cada vez mais, para a dessacralização da política e dos políticos no imaginário social caboverdiano, ficando cada vez mais claro que, como nos ensina Maquiavel, a política é a arte de conquistar e manter o poder ou os recursos de poder, como cargos e outros recursos associados a cargos, para as quais os actores políticos recorrem aos mais diversos cálculos e estratégias, conforme as circunstâncias e as oportunidades eleitorais, muitas vezes sem considerar as aritméticas ideológicas, mas sim as aritméticas eleitorais. Para efeitos da análise das práticas políticas, os argumentos morais não contribuem para explicar a realidade. Vale, sim, salientar factores e variáveis políticos para a análise das práticas políticas. Por outro lado, coloca-se a questão, a discutir, se determinadas práticas de maximização de poder não colocariam limites ao processo de democratização da sociedade?

    Na linha de autores como Scott Mainwaring[i], havíamos chamado a atenção, algures[ii], para a importância, em termos analíticos, de se considerar o papel das elites políticas na configuração dos sistemas partidários, particularmente no caso dos chamados países da terceira e quarta vagas de democratização, como é o caso de Cabo Verde. Mainwaring, de forma muito plausível, procurou demonstrar que a interacção de factores como a estrutura do sistema eleitoral e as clivagens sociais, percebidos como fundamentais para determinar a configuração dos sistemas partidários nos países ocidentais de democracia consolidada, não são suficientes para promover uma explicação mais acertada para os sistemas partidários dos países da terceira e quarta vagas de democratização, nomeadamente nos países do terceiro mundo, que possuem traços político-culturais manifestamente distintos. Sendo assim, propõe uma reformulação das teorias do sistema partidário. Para Mainwaring, a abordagem inspirada nas clivagens sociais e na estrutura eleitoral, deixaram de contemplar dois factores fundamentais para explicar os contornos dos sistemas partidários dos países da terceira e quarta vagas, quais sejam o grau de institucionalização do sistema partidário e a capacidade do Estado e das elites políticas na estruturação e reestruturação dos sistemas partidários a partir de cima.

    A institucionalização é um processo fundamental para a consolidação do sistema partidário, com reflexos positivos para a democracia. A institucionalização refere-se a um processo pelo qual uma prática ou organização se torna bem estabelecida e largamente conhecida, senão universalmente aceita. Os actores desenvolvem expectativas, orientações e comportamentos baseados na premissa de que esta prática ou organização prevalecerá num futuro previsível. Em política, institucionalização significa que os actores políticos possuem expectativas claras e estáveis sobre o comportamento dos outros actores. Neste sentido, institucionalização é um processo pelo qual as organizações e os procedimentos adquirem valor e estabilidade. Um sistema partidário fracamente institucionalizado é caracterizado por instabilidade considerável nos padrões de competição partidária, fraca raiz partidária na sociedade, legitimidade comparativamente baixa dos partidos e fraca organização partidária. Os sistemas partidários fracamente institucionalizados funcionam muito diferentemente dos altamente institucionalizados, com importantes implicações para a democracia. Particularmente para o caso dos países da terceira e quarta vagas de democratização, o padrão sociológico de apoio para os partidos não deve obscurecer o fato de que são sempre as elites políticas (com pretensão de comandar o Estado) que criam os partidos. Na maioria das vezes, as elites criam partidos para promover os seus próprios interesses e os actores estatais muitas vezes dissolvem os sistemas partidários temendo que os mesmos representem uma ameaça para os seus interesses. Às vezes, as elites políticas precisam ganhar apoio da base para permanecerem eleitoralmente viáveis e, na luta para isso, ganham lealdade entre os diferentes sectores sociais, assim como sugeriria a abordagem sobre a clivagem.

    Em Cabo Verde, no que diz respeito à legislação eleitoral, a atitude e a prática de parte da elite politica e partidária nacionais, principalmente dos dois partidos que dominam o parlamento, têm sido percebidas como uma conveniente resistência em proceder à sua reforma em diversos aspectos. Sabe-se que a legislação eleitoral tem um efeito importante sobre os partidos. Entre os aspectos da legislação eleitoral que dominam a agenda da reforma destacam-se dois: a alteração da modalidade do financiamento dos partidos e a alteração da configuração círculos eleitorais, aumentando a magnitude da maioria deles, trazendo, com isso, condições para maior proporcionalidade ao sistema eleitoral. Sabendo que uma alteração na modalidade de financiamento aos partidos, com a atribuição, por exemplo, de um subsidio de funcionamento aos partidos, para além da subvenção decorrente do número de votos obtidos nas eleições, beneficiaria um pouco os chamados pequenos partidos, esta tal resistência constituiria uma forma que parte da elite politica encontrou para influir na configuração do sistema partidário, limitando as oportunidades dos pequenos partidos ou condicionando uma participação mais efectiva dos pequenos partidos no sistema politico. Estas práticas contribuem, em última instância, para limitar, substancialmente, as credenciais do nosso sistema democrático. Por outro lado, acredita-se, ainda, que tal resistência vem sendo manifestada num continuado processo de fragmentação dos círculo eleitorais, por exemplo, com a criação dos círculos de S. Domingos e Calheta S. Miguel e, mais recentemente, com a criação de mais cinco concelhos que se transformarão em círculos eleitorais nas eleições que terão lugar no futuro. Esse processo tem ido no sentido contrário das tendências recentes do debate e, vale dizer, do desejo dos chamados pequenos partidos. Estes factos, evidenciam a prevalência do cálculo racional dos dois maiores partidos caboverdianos, no sentido de maximização do poder, a nível local e nacional.

    Contudo, a recente retomada de propostas e debates sobre a reforma do sistema eleitoral parece prometer novos cenários, com sinais tendentes a promover uma maior proporcionalidade para o sistema eleitoral e melhores oportunidades para os pequenos partidos. Porém, tudo dependerá do comportamento das nossas elites politico-partidárias, como um todo.

    Portanto, as negociações inicialmente referidas, visando as eleições legislativas de 22 de Janeiro de 2006, constituem mais uma evidencia flagrante de que tem sido forte o papel exercido pela elite politica e partidária nacional na configuração do sistema partidário caboverdiano, com efeitos na sua respectiva institucionalização. (Artigo publicado no Jornal Horizonte, em 03/08/2006)

     Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Político 


Endnotes[i] MAINWARING, Scott. Rethinking Party System in the Third Wave of Democratization: The Case of Brazil. Stanford, Stanford University Press, 1999; [ii] COSTA, Daniel H.. “Sistema Eleitoral e Sistema Partidário Caboverdianos (1991-2001), Com um Olhar Sobre o Mundo”, Revista Direito & Cidadania, Nº 16/17, 2003.

Elite Política e Sistema Partidário Cabo-verdiano (I)

    As recentes movimentações políticas traduzidas em arranjos entre alguns sectores da elite política nacional, no quadro da preparação das eleições legislativas de 22 de Janeiro de 2006, trouxeram implicações importantes para o sistema partidário nacional, reforçando o quadro bipartidário. Veja-se os casos dos arranjos entre PCD e MpD, em Santiago, e entre PTS e PAICV, em S. Vicente, em que os principais líderes desses dois considerados pequenos partidos optaram por abrir mão da disputa eleitoral no quadro dos próprios partidos, para integrarem as listas do MpD e do PAICV, respectivamente. Entretanto podemos recuar um pouco mais e lembrar da queixa da UCID sobre a colusão, política e administrativa, “tacitamente urdida”, entre o PAICV e MpD para deixá-lo fora da disputa eleitoral de 1991. Para muitos, se a UCID tivesse entrado na corrida eleitoral daquele ano, a configuração parlamentar saída daquelas eleições inaugurais seria outra, que não bipartidária. Queremos salientar aqui que estes factos vêm demonstrar, mais uma vez, a importância e o papel das elites políticas na configuração do sistema partidário caboverdiano.

    Efectivamente, é interessante notar que o PCD e o PTS são os dois únicos dos pequenos partidos, com representação no parlamento caboverdiano, cada um com um mandato, na legislatura passada; mandatos esses obtidos através duma coligação eleitoral entre ambos, em 2001. Com a não participação dos mesmos, de forma autónoma, nas últimas disputas eleitorais, ficou reforçado o grau de concentração do nosso sistema partidário parlamentar, que se traduz num bipartidarismo, teimosamente polarizado.

    É certo que os chamados pequenos partidos (UCID, PCD, PSD, PRD, PTS), devido a alegada carência de recursos financeiros e humanos, sempre enfrentaram sérias dificuldades organizacionais. As limitações financeiras têm contribuído para retringir o grau de actuação e intervenção política desses partidos levando a que a performance eleitoral dos mesmos regrida em eleições sucessivas, com reflexo directo no montante do subsídio financeiro a atribuir pelo Estado. Entretanto, importa salientar que a capacidade e o vigor na acção e mobilização políticas não dependem somente de recursos financeiros; dependem, também, grandemente, da vontade e do interesse para o combate, por um projecto político, por parte dos líderes partidários. Em última instância, essas dimensões se incrementam mutuamente.

    Por um lado, esse recuo no desempenho eleitoral de alguns pequenos partidos tem colocado em causa as suas sobrevivência e manutenção nas competições eleitorais. Por outro lado, a participação intermitente e cada vez menos substancial desses partidos na competição eleitoral contribui para limitar o alcance do processo de institucionalização do sistema partidário, uma vez que se verifica que a maioria deles não consegue competir em todos os círculos eleitorais no território nacional e no estrangeiro. Em boa medida, estas limitações vêm fazendo com que os pequenos partidos actuem, cada vez mais, de facto, como partidos locais ou regionais, o que contraria a lei.

    É um facto que esses considerados pequenos partidos, pelo contexto e modo como surgiram, são, claramente, partidos de quadros, na acepção de Maurice Duverger, visto terem surgido da acção política no seio da elite política, cultural e empresarial nacionais. São partidos que surgiram em reacção a ou da cisão no seio dos dois maiores partidos, o PAICV e o MpD. Efectivamente, nos momentos em que foram criados esses pequenos partidos encontravam-se dotados, de um número e qualidade bastantes, de quadros que se acreditava serem capazes de fazer as respectivas máquinas politicas funcionarem. Porém, desde muito cedo não foram capazes de demonstrar vigor estratégico e organizacionais necessários para os fins a que se propuseram. Constata-se, além disso, que os trabalhos de reforço da militância e de mobilização popular ser quase inexistentes, entre esses partidos, o que acreditamos que contribui mais ainda para o definhamento eleitoral dos mesmos, bem como para a redução da credibilidade e legitimação na representação popular. Efectivamente, são partidos que aparecem com mais acutilância política nas vésperas das eleições.

    Entretanto, o fraco desempenho dos mesmos, particularmente do PCD e PTS, nas eleições autárquicas de 2004 terá dado às suas cúpulas sinais claros de que os respectivos mandatos no parlamento poderiam não ser renovados nas eleições legislativas de 2006. Este facto redundou em crise de liderança interna a esses dois partidos. Em consequência, surgiram especulações, sobre uma provável extinção desses dois pequenos partidos com posterior ingresso/retorno dos seus principais dirigentes nos dois principais partidos, nomeadamente PAICV e MpD. Esta acção revela, na realidade, um claro cálculo estratégico de procura de sobrevivência política (possibilidade de aceder a cargos), por parte das elites dirigentes desses dois pequenos partidos. Deste modo, fica evidente que a postura de muitos políticos caboverdianoss enquadra-se na categoria daqueles que os cientistas políticos anglo-saxões chamam de office-seekers, categoria de políticos que agem sempre a procura de manter ou conquistar cargos, em oposição àqueles que seriam policy-seekers, que propugnam por determinadas linhas de políticas públicas. De facto, os políticos tendo em conta o imperativo de sobrevivência política, em um cenário de incerteza eleitoral passam a considerar a possibilidade de troca de partido nas vésperas das eleições, com base na avaliação acerca do impacto de tal atitude sobre a continuidade de sua carreira política. O argumento de alguns dirigentes do PCD de que a integração no MpD é uma das melhores formas de os dirigentes e quadros militantes do PCD terem alguma voz, intervenção e influencia mais activa no sistema político, não deixa esconder o cálculo de sobrevivência política por parte dos mesmos. Afinal, estamos a verificar uma crescente profissionalização dos políticos no país. (Artigo publicado no Jornal Horizonte, em 20/07/2006)

     Por: Daniel Henrique Costa, Cientista Político

O que é parlamentarismo mitigado?